Manual brasileiro do lawfare: da democracia à juristocracia em 8 passos
Como o STF concentrou poder e redesenhou o regime político brasileiro
No final de junho, participei da segunda edição do Westminster Free Speech Forum, realizado na sede da revista britânica UnHerd, no coração político de Londres. Organizado por Michael Shellenberger, o evento reuniu jornalistas, ativistas, parlamentares e pesquisadores de diversos países para discutir o avanço da censura institucional no Ocidente.
O local não poderia ser mais simbólico: Westminster é o centro do Parlamento britânico e um dos berços da democracia moderna. Falar de liberdade de expressão ali é um lembrete de que o princípio da livre circulação de ideias, que ajudou a moldar o mundo livre, está hoje sob ataque.
Ao longo do fórum, ficou evidente que o Complexo da Censura é um fenômeno global, com variações locais, mas com métodos e justificativas semelhantes: combate à “desinformação”, à “intolerância”, ao “discurso de ódio”. De maneira coordenada, tribunais, governos, Big Techs, ONGs e universidades vêm restringindo o debate público, reprimindo vozes dissidentes e redefinindo a própria ideia de democracia.
Na minha fala, procurei mostrar como o Brasil deixou de ser uma democracia funcional e evoluiu para uma juristocracia — um regime em que juízes não eleitos, especialmente os ministros da Suprema Corte, passaram a ter controle decisivo sobre os rumos do país, ultrapassando os limites constitucionais e substituindo a vontade dos representantes eleitos por decisões arbitrárias.
E uma das principais ferramentas dessa juristocracia é o lawfare — o uso estratégico e abusivo do sistema jurídico como arma política. Em vez de garantir justiça, a lei é instrumentalizada para perseguir adversários, eliminar opositores e concentrar poder, dando aparência de legalidade a medidas autoritárias. Essa tática, já documentada em outros países, tornou-se central no modelo brasileiro.
Essa transformação não foi abrupta e se desenhou em quatro etapas iniciais. A primeira delas foi a nomeação de ministros do Supremo com baixa qualificação técnica e forte vínculo político. Boa parte dos integrantes da Corte chegou ao cargo por critérios de lealdade, militância partidária ou conveniência institucional — e não por mérito jurídico. Muitos traziam no currículo a atuação direta em governos ou campanhas eleitorais, o que compromete a independência esperada de um juiz constitucional.
A segunda etapa foi o enfraquecimento do Congresso Nacional, resultado de uma longa história de corrupção sistêmica conduzida pelos governos do PT, mas envolvendo praticamente todos os grandes partidos. Durante anos, escândalos como o Mensalão destruíram a credibilidade do Legislativo. Recursos desviados de estatais e bancos públicos eram usados para comprar apoio parlamentar, garantindo a aprovação de projetos do Executivo. Empresas estratégicas e fundos de pensão foram loteados entre partidos aliados, criando centros de arrecadação ilícita que financiavam campanhas e asseguravam fidelidade política.
A Lava Jato revelou como o sistema se expandiu. Empreiteiras pagavam propinas milionárias por contratos superfaturados com estatais como a Petrobras, destinando parte dos recursos a campanhas eleitorais. Esse modelo, no qual a corrupção se tornou método de governabilidade e o Executivo passou a controlar o Legislativo por meio da distribuição de vantagens ilícitas — premiando aliados e isolando opositores — ficou conhecido como “cleptocracia”. O termo foi popularizado no Brasil pelo ministro do STF Gilmar Mendes, que em 2015 afirmou que o PT havia instalado no país uma cleptocracia ao institucionalizar a corrupção como prática de governo.
Com dezenas de parlamentares investigados pelo Supremo, deputados e senadores tornaram-se especialmente vulneráveis à pressão do Judiciário. Temendo retaliações, muitos se submeteram à vontade dos ministros. O STF passou a deter um poder decisivo sobre a classe política, resultando em um Parlamento desmoralizado, incapaz de exercer seu papel constitucional como contrapeso aos outros poderes. Esse cenário de fragilidade institucional foi consequência direta da cleptocracia instalada anteriormente, que usou recursos públicos como moeda política, abrindo espaço para a juristocracia liderada pelo Supremo.
O terceiro movimento foi a expansão estratégica do poder judicial. O Supremo passou a reinterpretar leis, legislar por meio de decisões monocráticas, bloquear normas aprovadas pelo Congresso e interferir diretamente nas políticas do Executivo. A isso se soma o avanço de uma tendência perigosa: o ativismo judicial. Inicialmente celebrado por setores da imprensa e da academia como um freio aos abusos dos demais poderes e um instrumento de proteção de minorias, o ativismo rapidamente degenerou em voluntarismo judicial. Juízes deixaram de aplicar a Constituição para se comportar como legisladores ou líderes políticos, guiando-se por preferências ideológicas e não por limites legais. No Brasil, essa distorção se consolidou desde o mensalão e a Lava Jato, quando decisões judiciais passaram a pautar o debate público e interferir diretamente no processo político. Com o tempo, esse ativismo deixou de ser exceção para se tornar regra, rompendo os freios e contrapesos da República e naturalizando uma Corte com poderes ilimitados e sem controle institucional efetivo.
Não podemos deixar de mencionar a pandemia de Covid-19, que funcionou como o grande divisor de águas desse processo. Sob o argumento de proteger vidas, consolidou-se a lógica do 'autoritarismo necessário'. Nesse período, governadores e prefeitos — respaldados por decisões do STF que retiraram do Executivo federal a autoridade central sobre as medidas sanitárias — passaram a impor lockdowns, fechamento de atividades econômicas consideradas “não essenciais”, toques de recolher e censura de opiniões divergentes. Essa experiência não apenas ampliou o poder judicial, como também normalizou o estado de exceção entre a elite política e midiática. A população, dominada pelo medo, passou a aceitar — e até a exigir — medidas cada vez mais restritivas, criando o terreno perfeito para a consolidação da juristocracia.
Por fim, o STF adotou, informalmente, o papel de um novo “Poder Moderador”. Essa figura existia na Constituição do Império e era atribuída ao Imperador, que podia intervir para resolver impasses entre os Poderes. Na ordem republicana atual, esse poder não existe mais — mas a Suprema Corte se comporta como se o tivesse herdado. Intervém em crises políticas, suspende leis, anula decisões de outros poderes e assume para si a prerrogativa de definir o que é ou não democrático.
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