A terceira facada em Jair Bolsonaro
Moraes amplia a sequência de golpes desferidos contra Bolsonaro desde a facada de 2018, agora com a prisão do ex-presidente.
Em 2018, Jair Bolsonaro levou uma facada em plena luz do dia, diante de câmeras, jornalistas e de todo o país. Sobreviveu por pouco, passou por cirurgias sucessivas e carregou sequelas permanentes. Nos anos seguintes, a militância de esquerda e setores da imprensa trataram o atentado com desdém, ironias e teorias conspiratórias — uma tentativa de rebaixar o episódio mais grave já sofrido por um candidato presidencial desde a redemocratização.
Se a primeira facada tentou eliminá-lo fisicamente, e a segunda — a de 2022, com censura e perseguição institucional — buscou neutralizá-lo politicamente, agora vem a terceira: a transformação do sistema de Justiça em arma para destruí-lo. Depois de 100 dias em prisão domiciliar, Bolsonaro amanhece preso por ordem direta de Alexandre de Moraes. A decisão não é apenas ilegal e desproporcional. É um gesto político calculado, executado no dia 22 — o número que o identificava nas urnas.
Para justificar a prisão, o regime construiu três pilares frágeis. O primeiro transforma uma vigília religiosa convocada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) — sem qualquer incidente, e que sequer chegou a ocorrer — em “movimento criminoso” capaz de reproduzir o 8 de janeiro. O documento tenta associar a mera presença de apoiadores à ideia de tumulto e fuga, mas não aponta qual conduta específica seria ilícita. É ilação pura, sem fatos.
O segundo pilar é a suposta tentativa de violação da tornozeleira eletrônica. Em um vídeo divulgado pelo próprio STF, Bolsonaro aparece com fala arrastada e claramente medicado, e admite ter usado um ferro de solda no aparelho por “curiosidade”. Mas, como explica o advogado André Marsíglia, romper ou tentar romper a tornozeleira não autoriza automaticamente a conversão da medida cautelar em prisão preventiva. Antes, o juiz precisa intimar a defesa, colher explicações e demonstrar risco concreto de fuga. Nada disso foi feito. O ex-presidente Fernando Collor, em situação muito mais grave (desligamento total do equipamento por mais de um dia), não foi preso preventivamente.
Além disso, há inconsistências gritantes: o alerta de violação foi registrado às 00h08, dentro da própria casa, dentro de um condomínio cercado de policiais. Qual seria exatamente o plano de fuga? Esperar o dia inteiro, até a noite, para se misturar a uma vigília que nem ocorreu? Não há lógica alguma — e Moraes dedicou apenas um parágrafo de 17 páginas ao tema.
A terceira justificativa é a mais absurda: a fuga de terceiros. Moraes usa a saída de Carla Zambelli e Ramagem do país para inferir que Bolsonaro também fugiria. É o tipo de raciocínio que nenhum estudante de primeiro semestre de Direito aceitaria, argumentou o advogado Ênio Viterbo no X. A conduta de terceiros não pode ser imputada ao réu sem nexo causal, participação ou sequer ciência. Ironicamente, também estou sendo perseguido pela imputação de atos cometidos por terceiros.
Bolsonaro teve todas as oportunidades do mundo para fugir — e não fugiu. Poderia ter permanecido nos Estados Unidos, onde seria recebido com facilidade. Poderia ter pedido asilo em embaixadas de países aliados. Poderia ter viajado para dezenas de destinos internacionais onde é protegido politicamente. Ele escolheu enfrentar o sistema que o persegue.
A lógica por trás da decisão está clara. Não querem apenas a prisão, o silêncio ou a humilhação de Jair Bolsonaro. Querem destruí-lo. Querem apagá-lo como figura política. Querem um símbolo derrotado, submetido, quebrado, ou até mesmo morto, como Clériston Pereira, o Clezão. A terceira facada não é contra o corpo — é contra sua existência.
O padrão está claro:
Em 2018, tentaram matar Bolsonaro.
Em 2022, censuraram Bolsonaro.
Em 2026, prenderam Bolsonaro.
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A primeira facada
Em 2018, um dia antes das comemorações de 7 de setembro, Jair Bolsonaro foi esfaqueado em plena rua, durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG), por Adélio Bispo de Oliveira — um ex-filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Ele estava sendo carregado nos ombros por apoiadores quando Adélio rompeu a multidão e desferiu o golpe no abdômen, diante de câmeras, celulares e de uma multidão que assistiu ao ataque sem entender, naquele primeiro momento, a gravidade do que havia acabado de acontecer.
As investigações oficiais concluíram que Adélio agiu sozinho. O laudo psiquiátrico o classificou como portador de transtorno delirante persistente, e a Justiça o declarou inimputável. Mesmo assim, continuam abertas dúvidas que jamais foram respondidas — especialmente sobre quem eram os empresários que teriam bancado um escritório de advocacia de grande porte que enviou advogados em um jatinho para atendê-lo poucas horas após o atentado. A Polícia Federal, apesar de dois inquéritos, nunca ofereceu respostas convincentes para essas pontas soltas.
Tempos depois, o delegado que conduziu parte central da investigação acabou sendo promovido no governo Lula e mais tarde enviado ao exterior para ocupar uma função estratégica. A coincidência é, no mínimo, incômoda para um caso que permanece envolto em lacunas e decisões que nunca foram plenamente esclarecidas ao público.
A condução do caso pela PF aumentou a sensação de estranhamento. As conclusões foram rápidas para um crime dessa magnitude, e as variáveis que poderiam indicar a participação de terceiros foram descartadas com a mesma celeridade. Ao longo dos anos, Bolsonaro e aliados demonstraram desconforto com a investigação. Não apenas pelas lacunas evidentes, mas pela percepção de que a corporação não tratou o caso com a profundidade e a transparência que o atentado exigia.
Esse incômodo contribuiu para o desgaste entre Bolsonaro e a cúpula da PF, que explodiria em 2020, quando o presidente tentou substituir o diretor-geral por Alexandre Ramagem — homem de sua confiança — numa movimentação imediatamente barrada por Alexandre de Moraes. Foi um episódio singular: sob a alegação de que Bolsonaro estaria tentando interferir na PF, Moraes interferiu diretamente na PF, impedindo a nomeação.
Outra ironia histórica surge quando se observa o contraste: enquanto Bolsonaro teve sua indicação travada sob o pretexto da “moralidade administrativa”, o governo Lula nomeou sem cerimônia aliados íntimos para cargos estratégicos, incluindo seu advogado pessoal para o Supremo Tribunal Federal.
Há ainda outra ironia reveladora, presente na própria decisão de Moraes. Uma das justificativas para a prisão de Bolsonaro é a possibilidade de fuga — e o “exemplo” usado para sustentar essa hipótese é justamente a suposta fuga de Alexandre Ramagem para os Estados Unidos. O curioso é que essa “fuga” foi noticiada dias antes por Guilherme Amado, e, poucas horas depois da publicação, Moraes decretou a prisão de Ramagem.
Não foi a primeira vez que isso ocorreu. Há um padrão: uma informação questionável é publicada por Amado e, em seguida, converte-se em subsídio para decisões de Moraes. Foi assim no caso de Filipe Martins, cujo “desaparecimento” divulgado por Amado acabou se provando falso, mas já havia subsidiado a sua prisão. E foi assim também no episódio do grupo de WhatsApp dos empresários de direita, tema que A Investigação já expôs em detalhes.
A segunda facada
Se a primeira facada tentou eliminar Bolsonaro fisicamente, a segunda tentou eliminá-lo politicamente. A engrenagem começou a ser montada anos antes, quando o TSE, ainda em 2017, passou a realizar reuniões internas — algumas com agentes do FBI, da Abin, do Exército e de ONGs — para importar conceitos do Complexo Industrial da Censura.
Com o passar dos anos, o tribunal criou programas permanentes de “combate à desinformação”, uma assessoria especial de inteligência e, já sob Moraes, um núcleo de vigilância sem qualquer supervisão externa. Em pleno ano eleitoral, esse grupo atuou como uma polícia política informal: filtrando conteúdos, produzindo relatórios sigilosos e fornecendo o combustível burocrático para decisões de censura em série.
Em 22, o TSE passou a remover publicações, bloquear contas e censurar veículos, personalidades e influenciadores — sempre do mesmo espectro político. O número real permanece desconhecido porque o tribunal impôs sigilo e se recusou a fornecer dados. Mas parte do que realmente aconteceu pode ser conhecida graças às revelações da Vaza Toga e do Twitter Files.
A primeira Vaza Toga, publicada por Glenn Greenwald e Fábio Serapião, mostrou como decisões sensíveis eram tomadas dentro do gabinete de Moraes longe de qualquer transparência. Depois, os Twitter Files Brasil, publicados por mim, Eli Vieira e Michael Shellenberger, expuseram como o TSE e o STF pressionaram plataformas e exigiram remoções sem base legal, utilizando conceitos importados do ecossistema americano de censura. E, mais tarde, na Vaza Toga 4, revelei como núcleos internos do tribunal alimentavam esse sistema com relatórios feitos sob demanda, sem controle externo e com alvos previamente definidos.
Entre os casos mais emblemáticos de 2022 está a censura do documentário “Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro?”, da Brasil Paralelo, que investigava o atentado de 2018. Além da proibição de exibição, o TSE determinou a suspensão da monetização do canal. Foi censura prévia — vedada pela Constituição —, mas autorizada pelo tribunal com base naquele raciocínio importado do “combate ao caos informacional”: mesmo a verdade poderia ser proibida se tivesse potencial de “confundir” o eleitor.
E é justamente aqui que a hipocrisia fica mais evidente. No mesmo momento em que o TSE derrubava um documentário factual sobre a facada, o “Fakeada” — um “documentira” produzido pela TV 247, veículo alinhado ao PT — circulava sem qualquer restrição. Lançado em 2021, o vídeo insinuava que o atentado contra Bolsonaro havia sido encenado. Sem provas, apoiado em recortes seletivos e teorias conspiratórias, ultrapassou um milhão de visualizações no YouTube antes de ser removido pela rede social.
O “documentira” continua disponível no Facebook, republicado pelo ex-ministro da SECOM do Lula, Paulo Pimenta, onde ultrapassou cem mil visualizações. Já mostramos em A Investigação a conexão de Pimenta com o grupo “Caçadores de Fake News”, que se apresentou como apartidário enquanto utilizava estrutura estatal. O mesmo grupo, que teoricamente deveria combater desinformação, segue ativo atacando contas de direita e, hoje, organizou um tuitaço comemorando a prisão de Bolsonaro.
E não foram apenas ações do TSE ou de seus núcleos internos. A eleição brasileira de 2022 foi influenciada por uma articulação internacional que envolveu governo dos EUA, diplomatas, ONGs financiadas por fundações estrangeiras, Big Techs e ministros do STF em um esforço coordenado para isolar Jair Bolsonaro e controlar o ambiente informacional sob o pretexto de “defesa da democracia”.
Houve visitas de alto escalão do governo Biden, pedidos explícitos de apoio diplomático feitos por Luís Roberto Barroso, então presidente do STF, campanhas de mobilização coordenadas por ONGs progressistas e a atuação de laboratórios ligados ao Atlantic Council. Entidades financiadas por USAID, NED e grandes fundações americanas participaram da consolidação do Complexo Industrial da Censura, articulando conceitos e estratégias que depois seriam aplicados aqui.
Plataformas digitais, órgãos judiciais e grupos ativistas operaram de forma integrada — suprimindo conteúdos, derrubando perfis, pressionando instituições e moldando narrativas. Foi nesse ambiente, criado deliberadamente para restringir um lado do debate público, que a segunda facada se consumou.
A terceira facada
Se a primeira facada tentou eliminar Bolsonaro fisicamente, e a segunda tentou neutralizá-lo politicamente, a terceira é a mais grave: a transformação do sistema de Justiça em arma para destruir um adversário. Não é figura de linguagem. É a consequência direta de um ambiente jurídico criado a partir de inquéritos ilegais, conduzidos sem controle externo, prolongados indefinidamente e usados para perseguir críticos do STF — especialmente Jair Bolsonaro e seus apoiadores.
O centro dessa engrenagem é o Inquérito das Fake News (4.781), aberto em 2019 por Dias Toffoli e entregue a Alexandre de Moraes sem distribuição. Um inquérito criado para defender o tribunal de críticas virou, na prática, o instrumento mais poderoso de repressão política desde o fim da ditadura. Não protegeu a democracia; blindou o Judiciário de escrutínio público. Desde o início, violou o princípio do juiz natural, ignorou prazos, acumulou ramificações artificiais e serviu para justificar censuras, buscas, prisões e bloqueios de contas, tudo sob a narrativa de combater “desinformação”.
Posteriormente, esse primeiro inquérito abriu a porteira para uma série de procedimentos semelhantes, sempre nas mãos do mesmo ministro. A lógica se repetiu: amplia-se o objeto, cria-se um conceito impreciso — “milícia digital”, “atos antidemocráticos”, “campanha de desinformação” — e, dentro dessa moldura vaga, passa a caber qualquer ato, opinião, crítica ou reportagem. O resultado é um ecossistema de investigações que não respondem a ninguém, mas têm poder para punir todos.
É nesse ambiente que surge a nova safra de acusações produzidas pela “PF confiável”, que tenta convencer o país de que Bolsonaro arquitetava, desde 2019, um golpe de Estado caso fosse derrotado nas urnas. Pura especulação. A tese sustenta que questionar as urnas eletrônicas — tema debatido no Congresso há décadas, por diferentes correntes políticas — seria parte de um plano para sequestrar a democracia.
O absurdo se aprofunda quando o relatório recorre à teoria importada do firehosing para preencher os vazios. O conceito, empurrado para dentro do sistema por Letícia Sallorenzo, a “bruxa da Vaza Toga”, e adotado acriticamente pela PF, permite que mobilizações populares sejam tratadas como elementos de operações psicológicas com o fim de derrubar o tal Estado Democrático de Direito. Assim, uma sequência de episódios desconexos é reorganizada como se fizesse parte de uma mesma trama golpista: Kids Pretos, joias, cartão de vacinação, denúncias contra o TSE e debates sobre voto impresso.
A narrativa é conveniente não por sua força probatória — que é nula —, mas por sua utilidade política. Ela retroalimenta a tese de que o STF “previu” o golpe e, por isso, precisava de um inquérito excepcional para contê-lo. A ilusão funciona como justificativa retroativa: os inquéritos do STF deixam de ser procedimentos ilegais e passam a ser supostos instrumentos salvadores da democracia.
Agora, com Bolsonaro preso, essa construção atinge o seu ápice. A facada institucional cumpre o objetivo que as outras não conseguiram: transformar divergência política em crime, crítica em agressão, jornalismo em ameaça. O sistema encontrou na narrativa do “golpe permanente” o álibi perfeito para manter inquéritos sem fim, decisões sem base legal e poderes sem limite.
Qual será o desfecho do caso Bolsonaro?
A essa altura, a pergunta não é mais se o sistema vai recuar — mas até onde pretende avançar. O ciclo das três facadas mostra um projeto de poder que já não disfarça seus métodos: eliminar Jair Bolsonaro como figura política, neutralizar qualquer força que o apoie e reescrever a história recente para que o país aceite, como normal, o que nunca deveria ser.
Bolsonaro escolheu outro caminho. Mesmo debilitado pelas sequelas da facada, decidiu se apresentar à Justiça — consciente de que, nas condições atuais, sua prisão pode ser uma sentença de morte. Eu gostaria que ele pudesse simplesmente viver sua velhice em paz, depois de tudo o que já enfrentou e tudo o que já doou ao país. Mas ele tomou a decisão que julgou necessária.
A partir desse gesto, toda a narrativa muda. Não há fuga, não há plano mirabolante, não há clandestinidade. Há apenas um homem caminhando até a porta e dizendo que responderá, mesmo sabendo que o jogo está armado contra ele. Fugindo, seria o inimigo ideal para alimentar a fábula criada pelo regime. Ao se entregar, desmonta o enredo.
E isso irrita profundamente quem depende dessa versão fantasiosa. Eles queriam o fujão, o desesperado, o réu em disparada. Não o sujeito que se apresenta e obriga o sistema a lidar com o fato nu e cru.
O desfecho do caso Bolsonaro vai depender menos das acusações — frágeis, especulativas e juridicamente improcedentes — e mais da disputa sobre quem controla o significado desse momento. De um lado, um Judiciário que atua como parte interessada, movido por ressentimentos políticos e pela necessidade de reafirmar sua autoridade. De outro, um homem que se tornou símbolo — goste-se dele ou não — de uma resistência popular contra esse mesmo aparato.
A prisão é o ápice, mas não é o fim. Bolsonaro preso não encerra o ciclo; inaugura outro. E esse novo capítulo não será escrito em gabinetes, mas na disputa pela narrativa, nos tribunais internacionais, na pressão diplomática, nos movimentos de rua e no desgaste que cada gesto autoritário produz dentro e fora do país.



