Operação "Tio Joe": a influência dos EUA na eleição brasileira de 2022
Como Washington construiu a blindagem institucional que elegeu Lula
Houve intensa interferência internacional nas eleições de 2022 no Brasil — a mais importante desde a redemocratização — e ela não veio do bolsonarismo, mas da esquerda organizada, da rede de ONGs financiadas por fundações estrangeiras, da militância judicializada e de setores da imprensa alinhados com um único desfecho: a vitória de Lula. O movimento promovido como “defesa da democracia” foi, na prática, uma tentativa coordenada de tutela externa do processo eleitoral.
O jornalista Cláudio Dantas, em uma sacada precisa, batizou esse arranjo de “Operação Uncle Joe” (Tio Joe) — uma referência à Operação Brother Sam, a missão dos Estados Unidos em 1964 para apoiar o golpe militar que derrubou João Goulart. Naquele episódio, bastou a aproximação de navios da Marinha americana à costa brasileira para intimidar qualquer resistência e assegurar o êxito da ruptura. Em 2022, a atuação do Tio Sam foi mais sutil — e, por isso mesmo, mais eficaz. Cartas diplomáticas, visitas de alto escalão, recados públicos de apoio às instituições e campanhas orquestradas por ONGs financiadas por bilionários internacionais exerceram um tipo novo — e mais sofisticado — de pressão política.
O curioso é que os mesmos argumentos usados em 1964 para justificar o “contragolpe preventivo” dos militares são hoje repetidos por defensores da censura judicial. A esquerda que outrora condenava a interferência dos EUA no Brasil passou a defendê-la — desde que voltada contra seus adversários. Mas há uma diferença central. Em 1964, havia uma ameaça concreta de ruptura armada: influência soviética, guerrilhas treinadas por Cuba e revoluções violentas em curso pelo continente. O medo, embora talvez amplificado, tinha fundamento — ainda que não justificasse a intervenção americana. Em 2022, esse medo era fabricado. Não havia tanques, nem revolução. Apenas protestos, críticas e memes. Ainda assim, a narrativa de emergência institucional foi usada para justificar censura, perseguição e prisões políticas.
Como revelei nas reportagens sobre o Complexo Industrial da Censura, os EUA não apenas observavam os acontecimentos no Brasil — participaram ativamente da contenção política interna. O mais irônico é que esse mesmo arranjo nasceu nos EUA, a partir do pânico com a suposta interferência russa nas eleições de 2016. O problema, para Washington, nunca foi a interferência — mas quem a comete.
No fim, o Brasil voltou a ser tratado como uma peça de tabuleiro a ser manipulada no jogo global de interesses.
A pressão partiu de fora
Enquanto a Operação Brother Sam só veio à tona mais de uma década depois, com a desclassificação de documentos oficiais dos EUA, a operação atual foi revelada de forma inusitada. No dia 13 de maio de 2025, durante um evento internacional em Nova York, o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, admitiu sem rodeios:
“Fui aos Estados Unidos pedir ajuda para conter a ‘onda autoritária’ no Brasil.”
A declaração foi feita sem constrangimento durante a Brazil Week, promovida pelo Grupo LIDE — fundado por João Doria — em Nova York, diante de empresários, diplomatas e lideranças políticas. Sim, mais um daqueles eventos realizados longe da população brasileira com o objetivo de discutir os futuros do país. Segundo Barroso, quando presidia o TSE, reuniu-se ao menos três vezes com o encarregado de negócios dos EUA no Brasil, solicitando declarações públicas do governo americano em apoio ao sistema eleitoral brasileiro. “Acho que isso teve algum papel, porque os militares brasileiros não gostam de se indispor com os EUA, porque é lá que obtêm seus cursos e equipamentos”, disse o ministro, em um raro momento de franqueza sobre a articulação internacional por trás da blindagem institucional das eleições.
Este foi apenas mais um dos sincericídios de Barroso, que já havia exposto o viés político do Judiciário em outras ocasiões:
“Perdeu, mané, não amola” – dito a um manifestante bolsonarista em Nova York;
“Nós derrotamos o bolsonarismo” – declaração no Congresso da UNE, em julho de 2023, após a vitória de Lula;
“Eleição não se ganha, se toma” – frase dita por ele, depois atribuída a terceiros, sob a justificativa de que fora tirada de contexto.
O jornalista Cláudio Dantas, em artigo publicado em seu site, apontou que Barroso cometeu ao menos duas indiscrições ao falar publicamente sobre sua articulação com os Estados Unidos durante as eleições de 2022. A primeira foi revelar o nome de seu interlocutor diplomático — o diplomata Douglas Koneff, então encarregado de negócios dos EUA no Brasil. A segunda, mais reveladora, foi repetir quase literalmente uma declaração atribuída a uma “autoridade de alto escalão do Brasil” em uma reportagem do Financial Times, publicada em 2022, sobre uma “campanha discreta” da Casa Branca para assegurar que o Brasil respeitaria o resultado das urnas.
Na época, o jornal britânico citou essa fonte anônima dizendo:
“A declaração dos EUA foi muito importante, especialmente para os militares. Eles recebem equipamentos dos EUA e fazem treinamentos lá, de modo que ter boas relações com os EUA é muito importante para os militares brasileiros.”
Barroso repetiu o mesmo argumento, quase palavra por palavra, ao justificar por que havia pedido apoio diplomático dos EUA: disse que os militares brasileiros “não gostam de se indispor com os EUA” e que os gestos de Washington “podem ter tido algum papel” na contenção da crise institucional.
Para Dantas, a coincidência é reveladora. Ou Barroso fixou em sua mente a frase de uma fonte anônima e passou a repeti-la como um mantra político — ou foi ele próprio quem a disse em 2022, como fonte sigilosa do Financial Times. Se for o caso, o então presidente do TSE teria atuado não apenas como juiz eleitoral, mas também como articulador informal de pressões diplomáticas e construtor da narrativa internacional de que Bolsonaro preparava um golpe de Estado.
Os fatos reforçam essa hipótese. Koneff foi o diplomata que representou os Estados Unidos na reunião com embaixadores estrangeiros convocada por Jair Bolsonaro em 18 de julho de 2022, no Palácio da Alvorada. Na ocasião, Bolsonaro apresentou uma série de críticas ao sistema eleitoral brasileiro, questionando a segurança das urnas eletrônicas e a atuação do TSE, em especial de seus ministros — um discurso que viria a embasar sua futura inelegibilidade.
No dia seguinte ao evento, a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, sob responsabilidade direta de Koneff, publicou uma nota oficial reafirmando "confiança nas instituições democráticas brasileiras" e destacando que o sistema eleitoral do país servia como exemplo para outras nações. A nota declarava:
“As eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo. Estamos confiantes de que as eleições brasileiras de 2022 refletirão a vontade do eleitorado.”
Esse comunicado foi amplamente repercutido na imprensa brasileira e internacional, interpretado como um gesto direto de deslegitimação do discurso de Bolsonaro e um respaldo público ao TSE e à condução do processo eleitoral sob Alexandre de Moraes. Hoje, sabe-se que a nota foi solicitada diretamente por Barroso em reuniões anteriores com Koneff.
Em vez de proteger a soberania nacional, Barroso assumiu ter buscado apoio político de uma potência estrangeira para conter um adversário interno, sob o pretexto de “defender a democracia”. A fala desmonta qualquer narrativa de imparcialidade institucional. Revela que o STF, sob a liderança de Barroso e depois de Moraes, se comportou como parte ativa de uma coalizão transnacional, articulada com fundações, plataformas, think tanks e diplomatas, com o objetivo claro de neutralizar Bolsonaro e blindar o processo eleitoral de qualquer contestação legítima.
As diversas “visitinhas” dos gringos
Em paralelo, altos funcionários do governo Biden realizaram uma série de visitas estratégicas ao Brasil entre 2021 e 2022 — sempre sob o discurso diplomático de “confiança nas urnas”, mas com forte subtexto de vigilância política, alerta militar e contenção institucional. Segundo Cláudio Dantas, essas visitas compuseram uma campanha nada discreta, travestida de proteção democrática, mas que operava como parte de uma operação internacional de pressão psicológica e disciplinamento institucional.
O primeiro a vir foi William Burns, diretor da CIA, que desembarcou em Brasília em julho de 2021 e se reuniu com Jair Bolsonaro e assessores do núcleo duro, como Augusto Heleno. A visita foi noticiada como um gesto de preocupação democrática, mas — como observou Dantas — tratava-se de um personagem acostumado não com diplomacia, e sim com operações psicológicas, lawfare, manipulação informacional, sabotagem institucional e até insurreição política. Burns, como bem lembrou Dantas, não vem da ala branda do Departamento de Estado — vem da cavalaria, daquilo que hoje se chama guerra híbrida.
Logo depois, em agosto de 2021, o governo Biden enviou ao Brasil dois de seus principais assessores: Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional, e Juan González, diretor para o Hemisfério Ocidental. Eles se reuniram com Jair Bolsonaro, Braga Netto e Augusto Heleno, numa agenda oficialmente voltada a temas como meio ambiente e segurança regional. Mas, como reconheceu a própria imprensa americana, o verdadeiro objetivo da missão era conter a crescente retórica de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas. A estratégia teve efeito imediato. No mês seguinte, surgiram as primeiras manifestações formais dos Estados Unidos em defesa do sistema eleitoral brasileiro — antes mesmo de qualquer denúncia concreta de fraude ou tentativa de golpe.
Em abril de 2022, Victoria Nuland, subsecretária de Estado para Assuntos Políticos dos Estados Unidos, visitou Brasília acompanhada de Ricardo Zúñiga, então enviado especial para o Hemisfério Ocidental, para uma reunião do Diálogo de Alto Nível Brasil–Estados Unidos da América. Embora oficialmente descrita como uma iniciativa diplomática, a agenda e o contexto político sugerem que a missão também visava algo mais. Em entrevista à CNN, Victoria confirmou que as eleições no Brasil estavam entre os assuntos discutidos. Segundo Nuland, o país possuía um dos sistemas de votação mais seguros e transparentes de toda a região sul-americana.
Em 1º de junho de 2022, Juan González, diretor sênior para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, afirmou em entrevista coletiva que os EUA confiavam nas instituições eleitorais brasileiras, destacando sua robustez. Ressaltou que as eleições no Brasil eram uma questão interna, mas enfatizou a confiança americana no sistema eleitoral do país. Essa declaração ocorreu às vésperas da 9ª Cúpula das Américas, realizada de 6 a 10 de junho de 2022 em Los Angeles, onde o presidente Joe Biden se encontrou com o então presidente Jair Bolsonaro para discutir temas bilaterais e globais, incluindo democracia e segurança regional.
Pouco depois da nota da Embaixada dos EUA — chefiada interinamente por Douglas Koneff, em julho —, o secretário de Defesa, Lloyd Austin, visitou o Brasil em 5 de agosto de 2022. Reuniu-se com Braga Netto, Mourão, Heleno e o almirante Flávio Rocha. Austin não é um diplomata. É militar, linha dura, ex-combatente do Iraque. A mensagem era clara: não haveria espaço para questionamentos eleitorais, e qualquer contestação poderia significar isolamento internacional imediato.
O ápice desse teatro viria depois. Após os eventos de 8 de janeiro de 2023, foi a vez do secretário de Estado Antony Blinken entrar em cena, reforçando o discurso de “tentativa de golpe” e se solidarizando com Barroso e Moraes. Joe Biden chegou a telefonar diretamente para Lula, consolidando no plano internacional a narrativa de que o Brasil havia sofrido uma tentativa de insurreição inspirada no 6 de janeiro americano.
Assimetria e hipocrisia
Poucos dias depois da reunião com os embaixadores, em 24 de julho, desembarcou em Washington uma comitiva organizada pelo Washington Brazil Office (WBO), entidade criada justamente para atuar como ponte entre o progressismo brasileiro e o establishment político dos EUA. Durante seis dias, o grupo — composto por lideranças de ONGs, ex-integrantes de governos petistas e ativistas identitários — participou de reuniões com diplomatas do Departamento de Estado e com parlamentares democratas, entre eles Jamie Raskin e Bernie Sanders. A agenda foi mantida sob sigilo até sua execução, para evitar interferência da diplomacia brasileira, especialmente do então embaixador Nestor Forster.
Segundo reportagem do jornalista João Paulo Charleaux, na revista Piauí, o objetivo da comitiva era demonstrar que Bolsonaro teria meios e intenção de inviabilizar as eleições, contando com o apoio das Forças Armadas, forças policiais e parte da população armada. O grupo argumentava que o Brasil, sozinho, não teria capacidade institucional para conter esse movimento, e que apenas uma resposta externa firme poderia dissuadir o presidente. Os membros da comitiva buscavam, portanto, reforçar a narrativa de risco à democracia e ampliar a pressão internacional antes mesmo do início do processo eleitoral.
Após essas reuniões, o fluxo de manifestações públicas de confiança no sistema eleitoral brasileiro por parte do governo americano se intensificou — ainda que os EUA sequer utilizem o sistema eletrônico que passaram a exaltar no Brasil. O Departamento de Estado, a Casa Branca e parlamentares democratas emitiram notas, declarações e cartas conjuntas. A mais incisiva foi assinada por 39 congressistas dos EUA, recomendando que o presidente Joe Biden deixasse “inequivocamente claro” a Bolsonaro e às Forças Armadas que qualquer tentativa de subversão democrática isolaria o Brasil no cenário internacional.
A comitiva teve entre seus membros nomes como Anielle Franco (Instituto Marielle Franco), Sheila de Carvalho (Instituto Peregum e grupo Prerrogativas), Paulo Abrão (ex-secretário de Justiça no governo Dilma), Rogério Sottili (Instituto Vladimir Herzog) e Paulo Vannuchi (Comissão Arns). Boa parte das participantes — especialmente mulheres negras e indígenas — ocuparia posteriormente cargos no governo Lula, consolidando a convergência entre a estrutura de ONGs, a diplomacia paralela e o novo governo eleito.
Charleaux classificou a visita como uma “Operação Brother Sam ao contrário”. Desta vez, os pedidos de engajamento vieram da esquerda brasileira, que passou a recorrer aos mesmos mecanismos que antes condenava, apelando a Washington para intervir preventivamente no processo político nacional. Para Charleaux, desta vez os americanos estariam do lado da democracia.
Mas, quando se trata de personalidades da direita buscando interlocução política nos Estados Unidos, o tratamento institucional e midiático é radicalmente diferente. A mesma ação que, feita por lideranças da esquerda, é tida como “defesa da democracia”, passa a ser interpretada como “conspiração contra a soberania” se parte de um opositor.
Em fevereiro de 2025, Eduardo Bolsonaro (PL-SP) — hoje deputado federal licenciado — viajou aos Estados Unidos, onde se reuniu com parlamentares republicanos e figuras próximas ao ex-presidente Donald Trump. Segundo o próprio Eduardo, sua estada nos EUA tinha como objetivo articular apoio internacional às vítimas de abusos cometidos pelo sistema de Justiça brasileiro, denunciar a situação dos presos políticos do 8 de janeiro e pressionar por sanções contra autoridades responsáveis por violações sistemáticas de direitos — entre elas, o ministro Alexandre de Moraes.
Sob a acusação de atentar contra a soberania nacional, os deputados Lindbergh Farias (PT-RJ) e Rogério Correia (PT-MG) apresentaram ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime contra Eduardo, pedindo a apreensão de seu passaporte diplomático e a abertura de inquérito por supostos crimes como coação no curso do processo, obstrução de investigação de organização criminosa e conspiração contra a ordem democrática — tudo isso sem qualquer evidência concreta que sustentasse as acusações.
O ministro Alexandre de Moraes recebeu a representação e, em vez de rejeitá-la de plano, decidiu encaminhá-la à Procuradoria-Geral da República. A PGR respondeu que não havia elementos mínimos que justificassem a abertura de investigação ou a adoção de qualquer medida cautelar, mas manteve o caso em aberto por semanas, numa espécie de suspensão simbólica, alimentando especulações e sendo amplamente explorado por veículos de imprensa alinhados ao governo.
O arquivamento só veio em março, coincidentemente durante a visita oficial ao Brasil do relator especial da OEA para liberdade de expressão, Pedro Vaca, que havia manifestado preocupação com a escalada de medidas judiciais contra opositores políticos e com o uso abusivo de instrumentos legais para silenciar vozes dissidentes. Àquela altura, Eduardo Bolsonaro já havia solicitado licença do mandato na Câmara dos Deputados e anunciado sua decisão de permanecer nos Estados Unidos, alegando perseguição institucional e ameaças à sua liberdade de expressão e segurança pessoal.
“Moraes considerou que eu estaria violando a soberania brasileira e perguntou ao PGR sobre apreender meu passaporte. Então o que dizer desta confissão do atual presidente do STF e então presidente do TSE, Barroso? É atribuição de um juiz da Suprema Corte pedir para o governo Biden intervir em nossa eleição? É claro que não. Isso sim é conspiração. Margem para impeachment”, ironizou Eduardo no X.
Linha do tempo das reuniões
🗓️ 2021
Julho
William Burns, diretor da CIA, visita Brasília em 1º de julho. Reúne-se com o presidente Jair Bolsonaro e assessores do núcleo duro, como Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.
Agosto
Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, e Juan González, diretor para o Hemisfério Ocidental, visitam o Brasil. Encontram-se com Bolsonaro, Braga Netto e Heleno.
🗓️ 2022
Abril
Victoria Nuland, subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, visita Brasília acompanhada de Ricardo Zúñiga para reunião do Diálogo de Alto Nível Brasil–EUA.
1º de junho
Juan González declara publicamente a confiança dos EUA no sistema eleitoral brasileiro, às vésperas da 9ª Cúpula das Américas.
5 de agosto
Lloyd Austin, secretário de Defesa dos EUA, visita o Brasil. Reúne-se com Braga Netto, Mourão, Heleno e o almirante Flávio Rocha.
A ação das ONGs americanas
A interferência internacional nas eleições de 2022 não se restringiu ao governo dos Estados Unidos. Diversas organizações financiadas por fundações estrangeiras — mas em sua maioria americanas — atuaram diretamente no Brasil durante o período eleitoral.
Uma das principais iniciativas foi a campanha para aumentar a participação de jovens na política. O objetivo, no entanto, era impulsionar o segmento onde Lula liderava as intenções de voto com folga, já que o eleitorado jovem não havia vidido os anos do Mensalão ou da Lava Jato e, por isso, apresentava menor resistência a Lula.
Por trás da mobilização estava a agência Quid, ligada à Bancada Ativista do PSOL, com apoio de ONGs com histórico de financiamento estrangeiro e forte engajamento em pautas progressistas. Entre as organizações envolvidas estava a NOSSAS, uma organização sem fins lucrativos que desenvolve campanhas de mobilização social com o intuito de fortalecer "a democracia, justiça social e igualdade". Embora a NOSSAS não seja abertamente partidária, todas as causas que promove são de esquerda. A NOSSAS é financiada por grupos bilionários como Open Society, OAK Foundation, Skoll Foundation, Tinker Foundation, Malala Fund, Instituto Avon e entre outros.
Outra organização que patrocinou a iniciativa era a Girl Up, organização feminista com foco em garotas adolescentes conhecida no Brasil por promover a campanha — da qual a NOSSAS também participou — de distribuição de “absorventes gratuitos” nas escolas. A Girl Up foi criada pela United Nations Foundation (UN), uma organização internacional baseada nos Estados Unidos, parceira estratégica da ONU. Além do governo americano, a UN recebe financiamento da Johnson & Johnson — uma das maiores fabricantes de absorventes no mundo —, Bill & Melinda Foundation, Nike Foundation, Royal Dutch Shell e também a Disney.
A campanha foi impulsionada por celebridades como Anitta, Juliette, Felipe Neto, e até os atores de Hollywood Mark Ruffalo e Leonardo DiCaprio, com uma linguagem publicitária cuidadosamente roteirizada para parecer espontânea — mas que operava, na prática, como uma engrenagem de mobilização profissional à serviço da campanha de Lula. Segundo revelou o portal Metrópoles, o próprio PT investiu cerca de R$ 100 mil em mobilização semelhante com o objetivo explícito de obter mais votos para Lula.
Na sequência, surgiu o movimento Passe Livre pela Democracia, com a mesma estética, os mesmos operadores e objetivos semelhantes: pressionar prefeituras e tribunais para garantir transporte público gratuito nos dias de eleição, sob o pretexto de combater a abstenção. A operação foi organizada por meio do BONDE, plataforma operada pela NOSSAS e utilizada pelo Sleeping Giants — grupo que persegue ativistas e jornais não alinhados com suas ideologias e tenta desmonetizá-los —, e contou com apoio de muitas das mesmas entidades envolvidas na mobilização dos votos dos jovens.
Essas campanhas, no entanto, não foram iniciativas isoladas. Integram uma estratégia contínua de ocupação do debate público por meio de mobilizações digitais artificialmente estimuladas, quase sempre articuladas através da BONDE. Exemplos incluem: Cada Voto Conta, Marco Temporal Não!, Toma Café com Elas, SP sem Canudos e A Eleição do Ano. A estética, os temas e os rostos mudam — mas a estrutura é sempre a mesma: movimentos apresentados como espontâneos que, na prática, funcionam como braços auxiliares de um projeto político articulado com fundações, partidos e governos.
Caso Lula tivesse perdido, a narrativa já estava pronta: a abstenção dos mais pobres serviria como justificativa para contestar o resultado. Como venceu, a retórica foi invertida — e passou-se a acusar a oposição de “sabotar o acesso ao voto”. Em 2023, o então diretor da PRF, Silvinei Vasques, foi preso por ordem de Alexandre de Moraes, acusado de realizar blitze no Nordeste no dia da eleição — interpretadas como tentativa de supressão de votos. Uma medida que, inicialmente apresentada como proteção do direito ao voto, acabou servindo como instrumento de perseguição política.
O Brasil como laboratório de censura americano
A atuação internacional em favor da censura no Brasil não começou nas eleições de 2022 — vem de antes. Desde o início da ascensão do chamado Complexo Industrial da Censura (CIC), o Brasil foi transformado em um campo de testes para a nova arquitetura de moderação de conteúdo, construída nos Estados Unidos após o escândalo da Cambridge Analytica e a eleição de Donald Trump.
Ao longo de 2017, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) realizou reuniões com representantes da ABIN, plataformas digitais, ONGs e agências estrangeiras — como o FBI e o Departamento de Justiça dos EUA — para discutir estratégias de combate à desinformação. Em uma delas, os agentes americanos compartilharam experiências no enfrentamento à interferência estrangeira e na remoção de conteúdos em redes sociais. As atas, inicialmente sigilosas, mostram que as discussões já incluíam propostas como o bloqueio rápido de contas, o uso de inteligência artificial para monitoramento, a criação de listas de sites “confiáveis” e a categorização de conteúdos críticos como fake news, com base em relatórios de ONGs internacionais como a First Draft.
Este foi só o início de um ecossistema autoritário que, sob o pretexto de proteger a democracia, passou a controlar a informação, punir a divergência e restringir a liberdade de expressão. O que começou como uma ação preventiva contra fake news se consolidou como um sistema permanente de vigilância e censura, institucionalizado dentro do próprio Estado.
Esse ambiente abriu caminho para a etapa seguinte: a atuação direta das plataformas. Sob pressão política e midiática, elas passaram a construir mecanismos preventivos de contenção narrativa. Mas não o fizeram sozinhas, passando a agir em parceria com ONGs militantes, laboratórios de “análise de desinformação” e governos aliados. Essa nova engrenagem foi inaugurada no Brasil em julho de 2018, antes mesmo da eleição de Jair Bolsonaro.
Naquele mês, o Facebook anunciou a remoção de 196 páginas e 87 perfis brasileiros. Um dos principais alvos foi o Movimento Brasil Livre (MBL), páginas regionais ligadas ao grupo, a página do movimento Brasil 200, grupo de empresários liderado por Flávio Rocha, que até poucos dias antes era pré-candidato à Presidência da República pelo PRB com o apoio do próprio MBL. Também foram derrubados canais pró-Bolsonaro e até páginas apolíticas.
Segundo comunicado da rede, as páginas “violavam as políticas de autenticidade” da plataforma. “Essas páginas e perfis faziam parte de uma rede coordenada que se ocultava com o uso de contas falsas no Facebook, e escondia das pessoas a natureza e a origem de seu conteúdo com o propósito de gerar divisão e espalhar desinformação”. Nenhuma informação concreta sobre o conteúdo supostamente desinformativo foi apresentada. O momento da operação — a poucos meses das eleições presidenciais — levantou suspeitas sobre sua real motivação.
Dois anos depois, em 8 de julho de 2020, o padrão se repetiu. O Facebook removeu 88 ativos digitais: 35 contas, 14 páginas, 1 grupo e 38 perfis no Instagram. Agora, os alvos estavam diretamente ligados ao núcleo político de Bolsonaro — incluindo gabinetes da Presidência, de Flávio Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e deputados do PSL. Um dos nomes centrais era Tercio Arnaud Tomaz, assessor da Presidência e administrador da página “Bolsonaro Opressor 2.0”, com quase 1 milhão de seguidores.
Ambas as operações contaram com o suporte técnico do Digital Forensic Research Lab (DFRLab) — laboratório do Atlantic Council, think tank americano ligado à OTAN e financiado por governos ocidentais, multinacionais como a Chevron e pelo próprio Facebook, que doou US$ 1 milhão em 2018. O DFRLab já monitorava o Brasil desde maio daquele ano, rastreando a amplificação das alegações de “fraude nas urnas” por grupos conservadores.
Com técnicas de OSINT, o laboratório produzia relatórios, mapeava clusters de conteúdo e estabelecia conexões entre contas — mesmo sem evidência de violação legal. A remoção de 2020 foi detalhada: o Facebook divulgou números de engajamento e gastos com anúncios (US$ 1.500), e o DFRLab publicou um relatório na plataforma Medium com organogramas ligando operadores a gabinetes oficiais. Depoimentos à CPMI das Fake News, feitos por ex-aliados de Bolsonaro como Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Heitor Freire, reforçaram a tese de um “Gabinete do Ódio”. O Supremo Tribunal Federal, nos inquéritos sob relatoria de Alexandre de Moraes, passou a usar diretamente os relatórios do DFRLab como base para medidas judiciais — inclusive mandados de busca e apreensão.
A imprensa brasileira rapidamente aderiu à narrativa. Pouco importava que os critérios usados nas remoções fossem opacos e seletivos — ou que as ações visassem apenas um espectro político. A transparência era mínima. Em 2018, o Facebook só divulgou a lista de perfis removidos após pressão do Ministério Público Federal em Goiás. Não houve detalhamento das supostas infrações.
Importante observar: essa estrutura não ficou restrita ao Brasil. Em 2020, o DFRLab cofundou a Election Integrity Partnership (EIP) nos Estados Unidos, que monitorou e interveio em tempo real na eleição presidencial americana, adotando o mesmo modelo inaugurado por aqui — análise de OSINT, uso de dados internos das plataformas, remoções silenciosas e alinhamento com órgãos estatais. O Brasil foi o protótipo.
Desde então, consolidou-se um ecossistema transnacional de moderação política, composto por Big Techs, laboratórios de análise, agências de checagem, imprensa e Cortes Superiores. Seus elos institucionais e financiamentos cruzados moldaram o Complexo Industrial da Censura. Uma estrutura que opera sob a justificativa da defesa da democracia — mas que, na prática, promove censura seletiva e perseguição política a grupos específicos. Sob a desculpa do combate à desinformação, formou-se uma aliança entre plataformas digitais, ONGs internacionais e governos progressistas para vigiar, punir e silenciar opositores.
Financiamento americano da censura no Brasil
Em relatório co-autorado por mim para a a Civilization Works, think tank fundado por Michael Shellenberger, detalhamos como a repressão à liberdade de expressão no Brasil foi sistematicamente alimentada por dinheiro estrangeiro, expertise internacional e cooperação direta com potências ocidentais — em especial, com o governo dos Estados Unidos. O país se tornou um campo de testes para o Complexo Industrial da Censura (CIC), que opera globalmente sob o pretexto de “combater a desinformação”, mas cujo real objetivo é suprimir vozes dissidentes e controlar o fluxo de informação digital.
Entre os principais financiadores estão o Departamento de Estado dos EUA, a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) e a National Endowment for Democracy (NED) — esta última criada nos anos 1980 para substituir, de forma “transparente”, operações políticas antes conduzidas pela CIA. Como reconheceu o próprio cofundador da NED, Allen Weinstein, ao Washington Post em 1991: “Muito do que fazemos hoje era feito de forma encoberta pela CIA há 25 anos”.
Segundo Mike Benz, ex-subsecretário de Estado e diretor da Foundation for Freedom Online, o Brasil foi palco do primeiro experimento global de censura direta em ambientes criptografados. Durante o ciclo eleitoral de 2022, sob pressão judicial e com apoio de ONGs financiadas por Washington, o Telegram foi forçado por Alexandre de Moraes a remover contas e conteúdos pró-Bolsonaro, além de instalar mecanismos internos de moderação. Já o WhatsApp, por influência internacional, havia restringido o encaminhamento de mensagens desde 2019. Pela primeira vez, mensagens privadas entre familiares e amigos passaram a ser tratadas como potenciais ameaças à democracia — e alvo de vigilância sistemática.
Entidades como DFRLab, Meedan, Poynter Institute, Information Futures Lab (IFL) e Stanford Internet Observatory estruturaram uma rede de moderação em múltiplas camadas. O DFRLab treinou funcionários do TSE e publicou relatórios usados pelo STF para embasar ações judiciais. A Meedan, por meio do projeto Confirma 2022, forneceu ao TSE ferramentas para inserir “checagens” diretamente em grupos privados de WhatsApp — com apoio de Aos Fatos, Lupa, Projeto Comprova e financiamento de fundações americanas.
A NED e a USAID também financiaram portais como o Countering Disinformation e a coalizão Design 4 Democracy (D4D), integrada por brasileiros alinhados ao atual governo, como Marco Ruediger, diretor de Análise de Políticas Públicas da FGV. Foi ele quem defendeu, durante reuniões internas no TSE, a proposta de criação de uma lista de sites “confiáveis” — uma espécie de selo de credibilidade estatal que, na prática, fortaleceria veículos alinhados e colocaria os demais sob suspeita.
Esse ecossistema se estende ao meio acadêmico. O caso mais emblemático é o NetLab da UFRJ, liderado por Rose Marie Santini. Apesar de se apresentar como centro de pesquisa independente, o laboratório se consolidou como peça-chave no ataque a críticos do STF e à oposição. Seus relatórios já embasaram ações do Ministério da Justiça, decisões do Supremo e medidas da Senacon. Em 2023, por exemplo, acusou o Google de manipular algoritmos contra o PL das Fake News — acusação que levou à censura de conteúdos, à convocação da PF e à ameaça de multa de R$ 1 milhão por hora. Ainda assim, a PGR arquivou o caso por falta de provas. Entre 2023 e 2024, o NetLab recebeu cerca de R$ 8,3 milhões de fundações como Open Society, Ford Foundation, Serrapilheira e Greenpeace.
Outro caso revelador é o Instituto Vero, fundado pelo youtuber Felipe Neto. A ONG recebeu mais de R$ 1 milhão da Open Society e cerca de US$ 30 mil da Embaixada dos EUA a partir de 2023. O próprio Felipe Neto, segundo os Twitter Files Brasil, usava seu canal privilegiado com executivos do Twitter para pressionar por censura a adversários políticos e pautas contrárias ao discurso oficial durante a pandemia.
O Sleeping Giants Brasil também integra esse circuito. Criado em 2020, o grupo se apresenta como movimento de “consumidores apartidários”, mas atua exclusivamente contra vozes da direita. Recebeu mais de US$ 470 mil da Ford Foundation e da Open Society, além de R$ 200 mil do Instituto Serrapilheira para um estudo sobre vacinação — cujo resultado nunca foi divulgado.
De Tio Sam a Camarada Xi
Era um arranjo — quase — perfeito, que operou à margem da legislação nacional, da vontade popular e da transparência democrática, mas começou a ruir com o retorno de Donald Trump à cena política. O Brasil, no entanto, ainda permanece sob forte influência de interesses externos. Durante uma recente visita oficial à China, Lula pediu a Xi Jinping que enviasse um representante de confiança ao Brasil para discutir a regulação das redes sociais. A primeira-dama, Janja, interrompeu a reunião para acusar o TikTok — uma plataforma controlada pelo próprio regime chinês — de favorecer a extrema direita e disseminar desinformação. O constrangimento foi imediato. Mas o episódio revelou mais do que amadorismo diplomático: expôs o desejo explícito do governo brasileiro de importar, com o aval de uma ditadura, um modelo de vigilância centralizada e controle narrativo — sob o pretexto de proteger a democracia.
Enquanto o mundo começa a romper com o Consenso da Censura, o Brasil segue na contramão: aprofundando vínculos com regimes autoritários, adotando práticas repressivas e dobrando a aposta em um projeto de controle total da informação. Resta saber por quanto tempo a população aceitará ser tratada como massa de manobra em um experimento global de engenharia social.
Jornalista que sou, diletante, hoje distante das redações, saúdo o colega David Agape por mais essa excelente reportagem, inteiramente na contramão das patacoadas divulgadas pela #MidiaLixo.
Muito bom. Não há como negar nada disso, pois tudo isso já foi divulgado, de maneira ampla e irrestrita, na grande mídia. Ligar os fatos é essencial, especialmente o papel dos ministros do STF.