O Consenso da Censura e o fim da era de ouro da liberdade de expressão
Como o movimento Woke e o Complexo Industrial da Censura se uniram para institucionalizar a censura sob o pretexto de proteger a democracia.
Durante décadas, a liberdade de expressão parecia consolidada no mundo ocidental. Após a queda do Muro de Berlim, a ideia de que o debate livre era essencial para a democracia ganhou força como nunca antes. Ainda que ditaduras persistissem em partes da Ásia, África e América Latina, o Ocidente viveu um período de estabilidade e expansão sem precedentes.
A liberdade de imprensa, a liberdade acadêmica e o direito ao dissenso tornaram-se pilares das democracias liberais. Essa tolerância não era sustentada apenas por leis ou constituições, mas também por um consenso cultural: a convicção de que proteger o discurso — especialmente o discurso incômodo — era vital para manter sociedades livres. Abrir espaço para ideias erradas era visto como o preço inevitável do progresso, da inovação e da crítica necessária às instituições.
O advogado dinamarquês Jacob Mchangama, em Free Speech: A History from Socrates to Social Media (528 p., Basic Books, 2022), chama esse período de “era de ouro” — o momento mais livre da história para a circulação de ideias. Mas essa liberdade começou a ruir quando novas tecnologias desafiaram o controle das elites.
A internet, nos anos 1990, prometia uma utopia de comunicação: qualquer pessoa poderia publicar, debater e desafiar os monopólios midiáticos. As redes sociais, surgidas no início dos anos 2000, intensificaram essa revolução: democratizaram o acesso à informação, aceleraram movimentos sociais e pareciam, a princípio, prometer a democratização plena do debate público. Plataformas como Twitter e Facebook deram voz a marginalizados, mas também a dissidentes que questionavam narrativas dominantes.
As elites entraram em pânico. Perceberam que, além de perderem o monopólio da informação — o que muitos chamam de “monopólio da mentira” —, também não conseguiriam moldar as redes sociais a seu bel-prazer. As redes eram orgânicas, seguiam uma lógica própria e impulsionavam campanhas espontâneas, mobilizações imprevisíveis e ondas de opinião que escapavam ao controle dos antigos mediadores.
A Primavera Árabe (2010-2012) foi o primeiro alerta. O Brexit e, principalmente, a eleição de Donald Trump, em 2016, consolidaram o medo. Ficou claro que a comunicação descentralizada podia desestabilizar estruturas inteiras, permitindo a ascensão de movimentos populistas e a rejeição de projetos políticos e culturais antes considerados inquestionáveis.
Mais rápidas, diretas e sem filtros tradicionais, as redes sociais ameaçavam a capacidade das elites de mediar e moldar o debate público. O que no início foi celebrado como expansão democrática logo passou a ser tratado como ameaça existencial.
Nesse contexto nasceu o Consenso da Censura: a convicção de que a liberdade de expressão deve ser limitada para proteger instituições e conter o “caos” das redes. A liberdade, antes um direito inalienável, tornou-se um privilégio condicionado ao “uso responsável”. Discursos rotulados como tóxicos — fake news, discurso de ódio, desinformação — passaram a ser alvos de repressão, sempre em nome de um bem maior: a “ordem democrática” ou a “proteção de minorias”.
Esse processo floresceu nos centros do poder liberal — universidades, ONGs internacionais, organismos multilaterais, grandes plataformas de tecnologia e mídia tradicional. No Brasil, ganhou contornos ainda mais peculiares: a censura passou a ser comandada diretamente pelo Judiciário, transformado num ator político central.
Uma das justificativas mais repetidas para embasar essa nova censura foi o chamado "paradoxo da intolerância", proposto por Karl Popper em A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945). Popper escreveu (Volume 1, Capítulo 7, Nota 4) que a tolerância ilimitada pode permitir a ascensão de intolerantes, destruindo a própria tolerância. Ativistas woke, porém, distorceram essa ideia, usando-a para justificar a supressão de discursos considerados “prejudiciais”.
Mas, como explicam Eli Vieira e Gustavo Maultasch, essa interpretação é uma distorção grosseira do pensamento de Karl Popper. Além de ser apenas uma nota de rodapé, não uma tese central do livro, Popper enfatiza que o combate aos discursos intolerantes deve ser feito pela argumentação, pela exposição pública e pela força do debate aberto — não por meios autoritários ou censura prévia.
A redefinição da liberdade de expressão
"Liberdade de expressão não é liberdade de agressão! Não é liberdade para destruir a democracia, as instituições ou a dignidade alheia!"
Com essa frase, em letras garrafais e repetida como um mantra, o ministro do STF Alexandre de Moraes passou a embasar uma série de decisões que resultaram em censura no Brasil. Desde 2022, o bordão aparece em sentenças, entrevistas, pareceres e votos judiciais, consolidando-se como um slogan pessoal do ministro. Por meio dele, Moraes busca provar para o público — e para si mesmo — que o que faz não é censura. Mais do que isso: busca redefinir a liberdade de expressão como um direito condicionado, subordinado à sua interpretação de democracia, verdade e civilidade.
Mas nem sempre foi assim. Em seu discurso de posse no STF, em 2017, Moraes defendeu com veemência a liberdade de expressão como um valor inegociável. Em 2018, ao julgar a ADPF 548 — que tratava da censura a manifestações políticas em universidades durante o período eleitoral — o ministro foi categórico: “A Constituição protege a liberdade de expressão no seu duplo aspecto: o positivo, ou seja, o cidadão poder se manifestar como bem entender, e o negativo, que proíbe a ilegítima intervenção do Estado”. Foi além, afirmando que “não há permissivo constitucional para restringir a liberdade de expressão no seu sentido negativo” e que qualquer limitação preventiva ao debate público, principalmente em ambiente universitário, era inaceitável.
Cinco anos depois, o mesmo ministro suspendeu redes sociais inteiras, mandou prender influenciadores por falas e rotulou conteúdos de “gravemente descontextualizados” como ameaças à democracia. O contraste com sua atuação recente é notável. Essa transformação demonstra como se deu a formação do Consenso da Censura: não de uma ruptura abrupta, mas de uma mudança gradual, ancorada em justificativas morais e jurídicas
Nesse processo, Moraes passou a recorrer a referências clássicas do pensamento liberal para legitimar decisões restritivas. Em uma das mais controversas, ao censurar a plataforma Rumble, citou o filósofo John Stuart Mill como suposto apoio à remoção de conteúdos classificados como desinformação. “Confunde-se liberdade de expressão com liberdade de agressão”, escreveu, afirmando que Mill defendia limites a discursos causadores de “danos injustos”.
A citação gerou espanto entre especialistas em liberdade de expressão, como o pesquisador Jacob Mchangama e o jurista Jeff Kosseff. Em artigo publicado no The Bedrock Principle, eles argumentaram que Moraes distorce completamente as ideias de Mill. Para eles, o pensador inglês estaria “se revirando no túmulo”. O trecho citado pelo ministro tratava de liberdade de associação, não de expressão. Na verdade, Mill defendia o oposto: “silenciar uma opinião é roubar a humanidade”, escreveu o filósofo, enfatizando que até ideias erradas merecem ser debatidas para que a verdade prevaleça.
De forma semelhante, Moraes evocou, fora de contexto, a jurisprudência americana sobre liberdade de expressão. Recorrendo à célebre — e frequentemente mal interpretada — frase do renomado jurista da Suprema Corte Americana Oliver Wendell Holmes sobre “gritar fogo falsamente num teatro lotado”, o ministro omitiu que o próprio Holmes mais tarde revisou sua posição, dando origem à doutrina moderna do “mercado de ideias”, que restringe severamente qualquer possibilidade de censura prévia.
Os pais do Consenso da Censura
O Consenso da Censura não tem um manifesto fundador, mas dois “pais” claros: o movimento Woke e o Complexo Industrial da Censura (CIC).
O movimento Woke surgiu no ambiente acadêmico, enraizado nas ideias da Nova Esquerda e das Teorias Críticas da Escola de Frankfurt, que nas décadas de 1960 e 1970 reformularam o marxismo sob uma ótica cultural. Essas correntes teóricas defendiam que a transformação da sociedade exigia não só mudanças econômicas, mas também o combate a formas simbólicas de opressão. Essa base intelectual ganhou nova força nos anos 2000, especialmente com o feminismo da terceira onda e o ativismo antirracista.
A partir daí, militantes passaram a sustentar que discursos considerados sexistas, racistas ou opressivos não eram apenas opiniões, mas mecanismos de perpetuação da violência simbólica. Por isso, defendiam que essas manifestações deveriam ser moderadas, suprimidas ou eliminadas do espaço público. Esse argumento se apoiava numa leitura distorcida do chamado “paradoxo da intolerância”, sugerindo que tolerar discursos ofensivos seria equivalente a ser cúmplice da opressão.
Inicialmente limitado ao debate acadêmico, o movimento ganhou projeção pública após a eleição de Barack Obama e, sobretudo, com a ascensão das redes sociais. Ativistas — apelidados de Social Justice Warriors (SJWs) — pressionaram plataformas como YouTube, Facebook e Twitter a remover conteúdos rotulados como misóginos, homofóbicos ou discriminatórios. O que começou como uma militância universitária se transformou em um novo consenso cultural, amplamente adotado por empresas, estúdios e celebridades — muitas vezes por convicção, mas também como estratégia de marketing e proteção de imagem.
A expansão do movimento foi impulsionada por grandes financiadores, como o bilionário George Soros, por meio da Open Society Foundations, que direcionaram milhões para causas de “justiça social”. Assim, o Woke deixou de ser um fenômeno marginal e passou a integrar a cultura institucional do Ocidente, ocupando espaço em universidades, ONGs, mídia, governos e corporações.
No Brasil, embora o termo woke não tenha tradução direta, a palavra “lacração” passou a representar fenômeno semelhante. A gíria surgiu nos anos 2000 no vocabulário de gays e travestis, com o sentido metafórico de “lacrar o ânus das inimigas” — ou seja, calar, humilhar e silenciar adversários. Desde a origem, a ideia de “lacrar” trazia a noção de impor superioridade, não de convencer pelo argumento. Com o tempo, entrou no vocabulário mainstream e, depois, tornou-se também um termo pejorativo.
O biólogo e jornalista Eli Vieira (Mais Iguais que os Outros, Avis Rara, 2025) prefere usar o termo "identitarismo" para descrever o fenômeno de maneira mais precisa e neutra, já que tanto "woke" quanto "lacração" se tornaram carregados de conotações negativas — inclusive entre muitos dos próprios simpatizantes do movimento.
Enquanto o movimento Woke fornecia a narrativa moral, o Complexo Industrial da Censura entregava o aparato prático. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, agências de inteligência americanas, como a CIA e o FBI, ganharam poderes extraordinários para monitorar comunicações sob o pretexto de combater o terrorismo. A vigilância digital se expandiu ainda mais com a escalada dos conflitos entre Rússia e Ucrânia e a crescente percepção de que a guerra moderna não se travava apenas nos campos de batalha, mas também no controle da informação.
As agências de inteligência passaram a enxergar a internet — e, especialmente, as redes sociais — como um novo teatro de guerra. Não era mais sobre espionar governos estrangeiros ou interceptar mensagens de grupos terroristas. Agora, a principal preocupação era a circulação de narrativas internas, capazes de desestabilizar eleições, gerar movimentos de massa ou enfraquecer a confiança nas instituições. O inimigo já não era apenas externo. A desinformação e os supostos discursos radicais internos passaram a ser tratados como ameaças à segurança nacional.
O Complexo Industrial da Censura (CIC) se estruturou como uma rede entrelaçada de agências governamentais, Big Techs, ONGs, think tanks, universidades e grandes veículos de mídia. Todos conectados por uma mesma lógica: a informação precisa ser controlada para preservar a "ordem democrática" — ainda que, para isso, seja necessário suprimir liberdades individuais.
O Consenso da Censura nasce desse casamento: de um lado, o medo das palavras que machucam; do outro, o medo das ideias que ameaçam o poder. A consequência foi o surgimento de uma nova censura — mais sutil que as antigas. Ela se apresenta como responsabilidade social, é terceirizada a empresas privadas, apoiada pela imprensa e por ONGs, sustentada por acadêmicos e vendida à sociedade como se fosse uma proteção contra o caos. Mas o objetivo, como sempre, continua o mesmo: controlar quem fala, o que se fala — e quem pode ser ouvido.
Pânico Moral
O que se vê hoje é a repetição de um padrão antigo. Sempre que novas ideias ou novas tecnologias surgem— da prensa de Gutenberg ao rádio — , o medo das elites gera uma contraofensiva. O sociólogo Stanley Cohen, em Folk Devils and Moral Panics (1972), mostrou como o pânico moral transforma ideias ou grupos em ameaças existenciais, legitimando controle. Hoje, fake news e discurso de ódio são os “demônios” que justificam a censura, apresentados como riscos à democracia.
Esses alvos simbólicos servem para canalizar a ansiedade coletiva e legitimar medidas de contenção. Assim, o medo não é um efeito colateral, ele é cuidadosamente cultivado para mobilizar a sociedade. Políticos, veículos de imprensa e ativistas constroem narrativas alarmistas que apresentam determinadas ideias ou movimentos como riscos intoleráveis. A censura, então, deixa de ser vista como uma violação excepcional e passa a ser desejada por parte da população, convencida de que a liberdade representa um perigo.
A chamada "era de ouro" da liberdade de expressão, como define Jacob Mchangama, talvez tenha sido apenas mais um intervalo entre ciclos de abertura e repressão que marcam a história humana desde as primeiras civilizações. Mchangama também propôs o conceito de entropia da liberdade de expressão para descrever esse fenômeno: toda conquista em favor do discurso livre tende, com o tempo, a se deteriorar. A liberdade, em vez de se expandir continuamente, perde sustentação e regride.
Fomentando a liberdade
Por um tempo, o Consenso da Censura pareceu invencível. Era como se essa ideia tivesse se enraizado de forma irreversível no Ocidente. Quem discordava era silenciado, rotulado ou simplesmente apagado do debate. Mas o Consenso começou a ruir em 2022, quando Elon Musk comprou o Twitter e revelou os Twitter Files. Os documentos expuseram colaborações entre big tech, governos e ONGs para moderar conteúdos, confirmando o CIC.
A revelação rompeu a blindagem do sistema e deixou claro que o discurso sobre "proteger a democracia" havia se transformado em um projeto de controle em larga escala. A eleição de Donald Trump em 2024, contra toda a pressão institucional, foi mais um reflexo dessa quebra.
No entanto, a luta está longe do fim. As forças que sustentam a censura seguem ativas, adaptando métodos e buscando novas formas de controle. A história mostra que a liberdade de expressão nunca é uma conquista definitiva. É frágil — e exige vigilância constante. Ainda que hoje a esquerda esteja se beneficiando do fato de a direita ser o principal alvo da censura moderna (falaremos mais sobre isso posteriormente), nada garante que o sistema não se voltará contra ela no futuro. A história mostra que instrumentos de repressão, uma vez consolidados, tendem a sobreviver aos seus criadores — e a mudar de mãos conforme o vento político.
Tenho certeza de que muitos ativistas pró-censura me acusarão de “defender o direito de contar mentiras ou espalhar ódio”. Mas essa acusação parte de uma confusão perigosa: a de que liberdade de expressão significa concordar com tudo o que é dito. Não significa. Defender a liberdade de expressão é defender o direito das pessoas falarem — inclusive quando estão erradas. Porque o único modo de descobrir o que é verdade é permitir que ideias concorram livremente no espaço público.
Hoje, porém, esse princípio vem sendo substituído por uma lógica perigosa: a de que a verdade pode — e deve — ser determinada por autoridades centrais, não apenas governamentais, mas também de organizações privadas. Por exemplo, as agências de checagem de fatos, embora realizem uma atividade jornalística legítima, se tornaram instrumentos de censura. Através de seus acordos com governos e redes sociais, essas agências adquiriram um poder quase policial, permitindo-lhes retirar ou suprimir conteúdos que consideram falsos. No entanto, esse poder é suscetível a abusos, e conteúdos verdadeiros ou em disputa também são removidos. Além disso, é notório que a maioria dessas agências de checagem de fatos possuem uma clara inclinação para a militância de esquerda, influenciando a maneira como os fatos são interpretados e apresentados.
Isso levanta uma questão central: quem decide o que é verdadeiro ou falso? Ou, como bem questiona Gustavo Maultasch: “quem adjudica?”. A subjetividade dessa decisão, aliada à orientação política dos checadores, pode transformar a checagem de fatos em uma ferramenta de censura, mesmo quando a intenção é promover a veracidade.
Portanto, defender a liberdade de expressão não é defender mentiras — é reconhecer que o direito de falar, ouvir e discordar é a única forma confiável de separar verdade e erro. Quando o poder de decidir o que pode ou não ser dito é concentrado nas mãos de poucos — sejam juízes, governos ou plataformas digitais — o risco não é apenas o erro, mas o abuso.
Mas resistir à censura visível não basta. É preciso fomentar, todos os dias, espaços onde a dúvida, a crítica e o confronto de ideias sejam vistos como pilares da sociedade livre — não como ameaças. Defender a liberdade só para quem concordamos é fácil; o verdadeiro teste é proteger justamente os discursos que nos incomodam. A liberdade não deve ser defendida só nos momentos de crise, ela precisa ser cultivada todos os dias como parte da vida em sociedade. Porque a censura não é apenas uma imposição externa: ela também brota de dentro de nós. E é contra essa nossa natureza, que é intrinsecamente censora, que precisamos lutar todos os dias.
Muito bom. 👍🏻
Irretocável. Ótimas referências, construção lógica impecável, argumentos consistentes. Para ler e reler.