“Processos do 8 de janeiro são nulos desde a origem”, diz advogado Silvio Kuroda
Segundo o advogado, as acusações oferecidas até dezembro de 2023 violaram regras institucionais.
Há cerca de três semanas publicamos a “Vaza Toga 2”, reportagem que revelou a criação de uma estrutura paralela dentro do TSE, coordenada a partir do gabinete do ministro Alexandre de Moraes, destinada a monitorar e classificar investigados do 8 de janeiro com base em postagens em redes sociais, curtidas antigas e até informações de informantes. Desde então, intensificou-se o debate sobre a aprovação de uma lei de anistia para os envolvidos. Um exemplo é o PL 2.858/2022, de autoria do deputado federal Major Vitor Hugo (PL/GO) em tramitação avançada na Câmara, que busca conceder perdão amplo aos participantes dos atos.
Mas, na visão do advogado Silvio Kuroda, especialista em Direito Público, ex-assessor de ministro do STJ e defensor de uma das presas do 8 de janeiro, em vez de anistia, o caminho poderia ser outro: a anulação total dos processos.
Nesta entrevista exclusiva para A Investigação, Kuroda explica que as denúncias apresentadas pelo subprocurador Carlos Frederico dos Santos violaram o princípio do promotor natural — a regra que garante que todo acusado seja processado por um promotor com atribuições previamente definidas em lei, e não por alguém designado para um caso específico. Essa atribuição cabia à então vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, que nunca abriu mão da função. Por isso, segundo Kuroda, as denúncias de Carlos Frederico não têm validade.
Ele cita portarias publicadas no Diário Oficial (imagem abaixo), que mantinham Lindôra como titular das ações no STF e apenas criavam um grupo de apoio coordenado por Carlos Frederico, sem lhe conferir poder para oferecer denúncias. Ao ignorar esse limite, diz Kuroda, o STF abriu espaço para um “tribunal de exceção”, no qual promotores e juízes são escolhidos a dedo.
O afastamento de Lindôra, prossegue, sugere uma manobra, em tese, inconstitucional. Ela já havia se posicionado contra investigações de cunho político e entrou em choque com Alexandre de Moraes em diversas ocasiões, defendendo suas prerrogativas. Tentou encerrar o chamado Inquérito das Fake News e, em parecer revelado pela Folha de S.Paulo em agosto de 2024, classificou como inconstitucional o uso da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) — órgão do TSE criado para monitorar desinformação, mas que passou a atuar como polícia investigativa. O documento pedia a anulação das medidas baseadas nos relatórios da AEED e advertia que o Judiciário não pode investigar crimes de ofício.
Apesar disso, o afastamento informal da vice procuradora-geral Lindôra Araújo abriu caminho para que o então procurador-geral Augusto Aras colocasse Carlos Frederico à frente da força-tarefa do 8 de janeiro. Essa designação, no entanto, não lhe conferia poder legal para apresentar denúncias. Mesmo assim, ele se tornou o rosto público da acusação e, como resultado, chegou a figurar na lista tríplice do STJ. Em 10 de julho de 2025, porém, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nomeou Maria Marluce Caldas Bezerra, promotora estadual de Alagoas, para a vaga.
Kuroda ressalta que o princípio do promotor natural é uma regra básica em qualquer Estado de Direito com regime democrático de governar. Como exemplo, cita os Estados Unidos: em julho de 2024, a juíza federal Aileen Cannon arquivou uma acusação contra Donald Trump ao considerar que o promotor especial Jack Smith havia sido nomeado sem a legitimidade constitucional necessária, caracterizando uma designação casuística. O caso demonstrou que o promotor deve ser o titular legítimo, não alguém escolhido para um processo específico, posteriormente aos fatos. Ou seja, essa regra é essencial não só no Brasil, mas em qualquer país que pretenda manter uma justiça imparcial.
A Investigação: Ao analisar os processos do 8 de janeiro, qual foi a primeira irregularidade que lhe chamou a atenção como advogado?
Quando tive contato com os processos do 8 de janeiro percebi de imediato que havia nulidades sérias. A primeira coisa que um operador do direito deve analisar é a competência. Depois vem a questão do promotor: o órgão do Ministério Público tinha atribuição para oferecer aquelas denúncias? Então fomos às portarias e normativas. Naquele momento, Augusto Aras era procurador-geral da República. E, como ocorre em transição de governo, quem respondia nos feitos originários do STF era a vice-procuradora-geral, no caso, Lindôra Araújo. Ela era a promotora natural, já designada formalmente por portarias da PGR/MPF (608/2021 e 203/2022), e com base na Lei Orgânica do Ministério Público da União.
Esses embates entre ela e o Ministro Alexandre de Moraes já vinham de antes, especialmente na ADPF 519 (arguição de descumprimento de preceito fundamental), quando Lindôra pediu o arquivamento de inquéritos e criticou o ministro por determinar diligências sem consulta à PGR, o que, segundo ela, poderia contaminar provas e, inclusive, violar as prerrogativas do próprio Ministério Público. Moraes rejeitou os pedidos, mantendo as investigações ativas e intensificando o conflito institucional.
No dia 12 de janeiro, a Portaria nº 24/2023 nomeou o subprocurador Carlos Frederico para integrar um grupo especial de apoio às investigações do 8 de janeiro. Essa portaria criava um “gaeco” exclusivo, mas mantinha Lindôra como titular para as ações penais. Dias antes, a Portaria nº 10/2023 (4 de janeiro) já havia convocado membros auxiliares durante o recesso, algo incomum, sem que houvesse anuência da promotora natural. Não houve ato formal de Lindôra autorizando que Carlos Frederico oferecesse denúncias, nem mesmo assinatura conjunta. Quando ele fez isso, violou frontalmente a Constituição, especificamente a garantia do promotor natural.
A Investigação: O que significa exatamente o princípio do promotor natural?
Trata-se de um direito garantido a todo cidadão de ser processado pela autoridade competente, previsto no art. 5º, inciso LIII, da CF. É como o princípio do juiz natural: não pode haver tribunal de exceção. A Constituição veda que alguém seja processado por autoridades escolhidas ad hoc. O promotor deve estar previamente investido no cargo, não pode ser designado para um caso específico, após o fato. É a espinha dorsal do Ministério Público brasileiro. Uma denúncia oferecida por quem não é o promotor natural é um ato juridicamente nulo, ou seja, juridicamente inexistente.
A doutrina é pacífica nesse sentido: autores como Hugo Nigro Mazzilli, Emerson Garcia, Eugênio Pacelli, além de Gilmar Mendes e o próprio Alexandre de Moraes em suas obras acadêmicas, já reconheceram a nulidade quando o princípio é violado. O mesmo defendem juristas, em suas doutrinas, como Tourinho Filho, Aury Lopes Jr. e Jacinto Miranda Coutinho — muitos deles identificados com um posicionamento mais à esquerda. Isso mostra que a defesa da garantia do promotor natural não é uma bandeira política, mas um direito fundamental assegurado com o devido processo penal.
A Investigação: O senhor aplicou isso em algum caso concreto?
Sim. No primeiro momento que tivemos contato com os autos da Ação Penal 1181, nas alegações finais da senhora Lindinalva Pereira, que já foi condenada. Elaboramos um capítulo inteiro mostrando a violação do promotor natural. Lindôra era a titular, com atribuições objetivamente definidas, mas as denúncias foram assinadas e oferecidas individualmente por Carlos Frederico. Isso gera nulidade absoluta, que não pode ser convalidada.
O processo dela é ainda mais grave: observamos que a defesa da época não apresentou defesa prévia, e a Defensoria também não foi intimada para apresentar, como determina o Código de Processo Penal. Com isto, toda a instrução ocorreu apenas com a acusação. Uma nulidade gritante, que compromete todo o processo. É um caso de violação de direitos humanos que, se dolosa, pode até se enquadrar no Estatuto de Roma.
Registramos essa nulidade nas Alegações Finais, nos Embargos de Declaração e demais recursos, mas o ministro Alexandre de Moraes simplesmente ignorou o tema. Caso fosse reconhecida, a denúncia seria juridicamente inexistente, anulando todo o processo desde a origem.
A Investigação: O senhor diz que a nulidade é absoluta. Isso implicaria anular todos os processos?
Sim. Assim como no caso do ex-presidente Lula, em que o STF reconheceu a incompetência da 13ª Vara, anulando todos os atos do processo desde a origem, aqui as denúncias e todos os atos também devem ser anulados. No processo de Lula, o Supremo fez questão de registrar a nulidade desde a origem, para então declarar a prescrição com redutor da idade. Tudo teria de voltar ao zero: nova denúncia, nova instrução, novas audiências. Não há como “consertar” esse vício.
A Investigação: E por que essa questão não foi analisada pelo STF?
Nós levantamos em alegações finais, embargos de declaração, recursos, mas foi simplesmente ignorado. Moraes tratou como se estivéssemos discutindo apenas competência do juízo. O tema do promotor natural não foi enfrentado. É uma nulidade de ordem pública, mas até hoje o plenário não analisou. Isso mostra que muitas nulidades gravíssimas podem nem sequer ter chegado ao conhecimento do colegiado, ficando abafadas na relatoria.
A Investigação: O senhor falou em tribunal de exceção. Pode explicar melhor essa comparação?
O tribunal de exceção é aquele montado para julgar alguém de forma casuística, escolhendo juiz e promotor a dedo. Foi o que ocorreu em Nuremberg, após a Segunda Guerra, e é justamente o que a Constituição brasileira proíbe. Quando se cria um grupo de promotores apenas para um caso, afastando ou ignorando a promotora natural titular das atribuições para as denúncias oferecidas, estamos diante de um tribunal de exceção. Isso corrói a ordem jurídica e mina a confiança da sociedade na Justiça.
A Investigação: Há outros erros processuais graves além da questão do promotor natural?
Sim. No caso da senhora Lindinalva, por exemplo, não houve defesa prévia. O ministro esqueceu de intimar a Defensoria Pública, o que deixou a ré em atuação de revelia, violando disposição expressa da lei. A instrução inteira ocorreu só com acusação e sem a peça da defesa, especificando suas provas. Isso é gravíssimo. Somado à questão do promotor natural, o processo está completamente comprometido. É o tipo de falha que gera prejuízo presumido, pois compromete o contraditório e a ampla defesa desde a origem, violando diretamente a Constituição.
A Investigação: Como o senhor conecta isso às revelações da Vaza Toga 2?
As audiências de custódia são o elo. O Ministério Público já estava se manifestando pela soltura de muitos presos, mas surgiram as “certidões” reveladas pela Vaza Toga, produzidas dentro do TSE. Segundo a matéria, elas foram usadas para manter prisões e depois embasar denúncias. O problema é que quem assinava as denúncias era Carlos Frederico, que coordenava esse grupo especial no âmbito do Ministério Público. Ou seja, ao mesmo tempo em que produzia material investigativo para embasar a acusação, ele oferecia denúncias sem a anuência da promotora natural. Isso é gravíssimo: juízes instrutores e promotores convocados, durante as audiências de custódia, agiram mais como longa manus do relator do que com a independência funcional inerente ao cargo vitalício que exercem.
No mesmo período, outras medidas chamaram a atenção pelo timing. Em 9 de janeiro de 2023, Lula sancionou a Lei 14.520/2023, que reajustou em 18% os subsídios de ministros do STF, do procurador-geral e de servidores do Judiciário — aprovada em regime de urgência no fim de 2022. Já em 1º de janeiro, a Medida Provisória 1.154/2023 reorganizou competências sobre a guarda de prédios públicos da União, depois convertida na Lei 14.600/2023. Embora não tenham relação direta com os atos de 8 de janeiro, reforçaram a percepção de coincidências institucionais no mesmo contexto em que as investigações avançavam.
A Investigação: Em resumo, qual é a gravidade desse vício?
Ele anula toda a primeira leva de denúncias. Não existe processo penal sem promotor natural. Tal nulidade só deixaria de existir se a Vice Procuradora-geral, promotora natural e titular das atribuições, tivesse assinado junto ou declarado previamente que estava de acordo. É como um tribunal de Nuremberg: promotor e juiz escolhidos a dedo. Isso fere a Constituição, esvazia as garantias conquistadas pelo Ministério Público desde 1988, reforçadas com a Lei Orgânica do MPU, e abre um precedente perigosíssimo.
A Investigação: O senhor vê alguma saída institucional para corrigir esse problema?
A solução seria a própria Procuradoria-geral ou o Tribunal de ofício reconhecer a nulidade, extinguir os autos e conceder a liberdade aos condenados, para então reiniciar os processos desde o início, com denúncia assinada pelo procurador incumbido das atribuições, no juízo competente. Outra solução seria o ajuizamento de uma ADPF por parte dos legitimados legais para suspender e anular todas as condenações do 08 de janeiro, especialmente das pessoas condenadas no início, uma vez que a garantia do promotor natural é um preceito fundamental.
Reconhecer essas falhas seria ato de justiça e de coragem institucional. Muitos promotores têm medo de se manifestar e sofrer perseguição, uma vez que a principal garantia constitucional vem sendo relativizada. Isso acaba ficando nas mãos da advocacia privada, que tenta sustentar o tema nos autos em que atua, mesmo sem respaldo político.
A Investigação: Como o senhor avalia o silêncio das associações do Ministério Público?
É preocupante. As associações deveriam defender prerrogativas constitucionais da carreira, mas estão omissas. Se não reagirem, o Ministério Público perde tudo o que conquistou em termos de independência funcional, unidade e indivisibilidade desde a promulgação da CF em 1988. Essas garantias não são privilégios dos membros, são garantias da sociedade.
A Investigação: Para o cidadão comum, que não entende termos técnicos, como o senhor resumiria essa questão?
É simples: ninguém pode ser processado por um promotor escolhido a dedo. Todos têm o direito de ser acusados por quem a lei determina. Quando isso não acontece, temos um tribunal de exceção, e o processo é nulo. É disso que se trata. O poder público deve respeitar a legalidade estrita e o cidadão exercer seus direitos naquilo que a lei não proíbe.






Excelente entrevista, mas CONFIRMA que o AM NÂO lê o que a defesa escreve ou passa por cima de tudo na sua loucura de condenar todo o mundo, estamos fora da lei ou seja LAWFARE
Para a justiça normal são obviamente nulos por princípio. O problema é que estamos vivendo em um estado de excessão instalado na forma de uma juristocracia da pior espécie, para a qual as normas jurídicas normais nada valem.