Novembro Azul: humor travestido de 'campanha de conscientização' pode atrapalhar a prevenção
Urologistas classificam vídeo do Porta dos Fundos, protagonizado pelo ator Antônio Fagundes, como “baixaria” e temem efeito contrário.
“Quando é que você vai liberar esse cu aí?”, pergunta Antônio Fagundes, ator veterano das novelas da Rede Globo, em um vídeo produzido pelo polêmico grupo de humor Porta dos Fundos. A peça “Novembro Azul Sincero” procura “conscientizar” sobre a importância dos exames de próstata com frases chulas como “colocar o cu pra jogo e deixar o urologista cutucar o seu butico é a melhor escolha para uma vida saudável (sic)”. Embora o personagem de Fagundes converse com um urologista na esquete, o médico é, na verdade, um personagem interpretado pelo Antônio Tabet, criador do site "Kibe Loco".
O vídeo viralizou nas redes sociais e até o momento já conta com mais de 2 milhões de visualizações no YouTube. Enquanto muitos dos internautas disseram que o vídeo “conscientiza de forma leve” sendo por alguns considerado mais eficaz que as campanhas do Ministério da Saúde, outros internet — incluindo médicos e especialistas — acharam o vídeo desnecessário e chulo, levantando a hipótese de que utilizar o tom humorístico presente em alguns vídeos sobre o Novembro Azul pode fazer com que muitos homens não procurem médicos para a realização dos exames de detecção, o que é o objetivo contrário da campanha.
A preocupação dos especialistas não é sem embasamento: o câncer de próstata está na lista dos cinco tipos de câncer que mais matam no Brasil, segundo dados de 2020 da Organização Pan-Americana da Saúde. Ainda existe um grande tabu em torno dos exames de detecção do câncer de próstata, visto que grande parte das campanhas de conscientização falam, apenas, do exame de toque retal — e, aparentemente, os vídeos de teor humorístico não estão ajudando na mudança desse ponto de vista.
No Twitter, com a repercussão do vídeo do Porta dos Fundos, alguns homens chegaram a afirmar que preferiam morrer do que deixar alguém “dedar” sua região retal, enquanto outros disseram que esperavam que, quando chegasse sua vez de fazer o exame, que outro método já estivesse disponível. Esses métodos já existem, mas não são divulgados e sequer são citados nesses tipos de vídeo.
Especialistas consultados pela reportagem manifestaram preocupação, destacando a linguagem inadequada e a possibilidade de o vídeo gerar um efeito contrário à conscientização.
Informações omitidas em prol da piada
Embora possam ser bem-intencionadas, as “campanhas” promovidas por canais de humor reforçam estereótipos comuns sobre o exame de toque retal, que é um dos principais métodos de detecção do câncer de próstata, e não informam corretamente o espectador. Durante a realização da reportagem, nossa equipe encontrou dois vídeos similares ao que foi produzido pelo Porta dos Fundos, ambos com mais de 5 anos de publicação e milhões de visualizações.
Os dois vídeos utilizam piadas recorrentes, como a de que o homem pode sentir prazer no exame, voltando para fazer o procedimento várias vezes ao ano, até mesmo “prendendo” o dedo do médico na região retal, implicando indiretamente que o paciente pode se “tornar” homossexual após o exame. Também é utilizada a mesma linguagem presente no vídeo do Porta dos Fundos, onde o interlocutor ou personagem principal da peça tenta convencer o espectador de que é necessário que ele leve uma “cutucada” para preservar sua saúde.
Nenhum dos vídeos assistidos por nossa equipe apresentou ao espectador a informação de que existem outros dois exames que podem ser utilizados para a detecção precoce do câncer de próstata: o exame de PSA, um exame de sangue que mede a quantidade de uma proteína produzida pela próstata (Antígeno Prostático Específico), e a ressonância magnética de próstata, um exame de imagem que usa ondas eletromagnéticas ao redor do corpo para formar imagens detalhadas dos tecidos moles. Apesar disso, o exame de toque retal é erroneamente apresentado como o único exame disponível para essa finalidade.
Em uma publicação no Twitter, o médico e escritor Alessandro Loiola, autor de “Sendo um Homem” (2022, Editora Fontenele, 432 pag.), que se dedica à recuperação hormonal masculina, afirmou que já é passada a hora do público masculino ser informado — sem o uso de piadas — sobre a existência de outros exames de detecção precoce para o câncer de próstata.
“O exame de toque retal não é um exame de prevenção, e sim de detecção. Brincar com as palavras é uma tática de populismo barato. Com outras opções disponíveis, já passou da hora de debatermos com todas as letras, e sem piadas, a obsolescência do exame de toque retal para neoplasias prostáticas”, criticou.
Loiola também esclarece que, em 2021, um estudo randomizado de pesquisadores finlandeses concluiu que não é necessário realizar o exame de toque retal para a detecção do câncer de próstata em homens com níveis de PSA abaixo de 3,9 mg/ML, desde que o PSA total ou livre esteja acima de 20%. Se o paciente apresentar níveis de PSA total ou livre abaixo de 20%, a abordagem indicada é a realização de uma biópsia prostática para a detecção do câncer em vez do exame de toque retal, visto que, em 25% desses casos, o homem apresenta realmente o quadro de câncer prostático.
Além da problemática das piadas, o médico acredita que a insistência em apresentar o toque retal como principal opção para os exames de detecção é uma estratégia para transferir ao paciente a culpa de um possível “fracasso” na detecção precoce do câncer no sistema público de saúde. Com isso, transformar o “preconceito” no principal vilão da história se torna mais conveniente e econômico do que trazer mais conscientização sobre os demais exames, que custam mais dinheiro aos cofres públicos do que o exame de toque retal.
Homens afastados dos exames de rotina
Para o médico Alain Dutra, urologista há mais de 20 anos, membro titular da Sociedade Brasileira de Urologia e professor do curso de pós-graduação em Saúde Masculina na Plenitude Educação, a utilização do humor é uma questão complexa e que esse recurso deve ficar fora das campanhas, pois pode facilmente escalar para uma piada de mal gosto, causando desconforto ao paciente.
“Prefiro ser visto como mais 'sério' e acredito que o humor deve ser excluído das campanhas do Novembro Azul porque, se o paciente não entender a brincadeira, ele pode começar a ter medo de ir ao médico fazer seus exames de detecção por achar que ele vai ser submetido a uma situação supostamente ‘vergonhosa’ e passível de piadinhas”, explicou.
Dutra também contou que, nessas horas, a cultura latino-americana de um homem de família forte e provedor também pode contribuir para que o homem se afaste dos exames, justamente pelas campanhas que reforçam o estereótipo de que, durante o exame de toque retal, o homem é colocado numa posição vulnerável, sendo “emasculado” ao longo do processo. O paciente não quer se sentir fraco, ridicularizado ou escutar piadas por fazer o exame, então, ele simplesmente se isenta de buscar um urologista e também acaba não recebendo a informação de que o exame de toque retal não é o único procedimento utilizado para detectar o câncer.
“Fiquei chocado com o que vi. O vídeo é uma baixaria e com certeza vai causar o efeito contrário, pois grande parte dos homens brasileiros são conservadores. Parece que esse vídeo tem muito mais o objetivo de promover a agenda ‘woke’ (progressista) do que realmente promover a conscientização, pois a linguagem utilizada é muito mais bem aceita por esse público”, afirmou.
Jamil Toufic Letaif Filho, médico urologista responsável pela Clínica Neuro Urológica do Espírito Santo, disse que o tom de humor nas campanhas não é totalmente condenável, mas que o tema não pode ser banalizado. “O assunto é de extrema importância social. Acredito que um tom de humor leve pode ser adotado para minimizar o medo dos homens sobre os procedimentos, porém, a verbalização usada no vídeo foi inapropriada para um tema onde não há espaços para banalização”, explicou. Para Jamil, as campanhas devem direcionar sua atenção à saúde masculina, garantindo que a mensagem principal de conscientização e prevenção não seja apenas um “pano de fundo” para piadas sobre o assunto.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA), estima-se que o Brasil terá quase 72 mil novos casos de câncer de próstata ao longo do triênio 2023-2025. Se a utilização da linguagem grosseira persistir juntamente com a banalização do tema nessas campanhas, há o risco de que o público-alvo evite procurar os procedimentos necessários, podendo causar um aumento nos números levantados pelo INCA. O câncer de próstata possui uma chance de cura de 90% quando detectado de forma precoce.
A opinião de quem já enfrentou o câncer
O personal trainer Aloísio Tadeu Rocha, 59, mora no município de Teófilo Otoni, em Minas Gerais. Em agosto deste ano, após exames de rotina, foi constatado que Tadeu estava com câncer de próstata. Ele explica que já fazia os exames há 13 anos, mas que o PSA começou a apresentar alterações recentemente, o que chamou a atenção de seu urologista. Diante disso, foi solicitada uma biópsia, que revelou a presença de um pequeno tumor na próstata. Como o câncer estava no estágio inicial, o médico solicitou que Tadeu fizesse uma cirurgia de remoção, que foi realizada no dia 16 de outubro. Segundo ele, sua recuperação está sendo tranquila e outros procedimentos, como quimioterapia, não serão necessários.
Antes do diagnóstico, o profissional de educação física não exibiu nenhum sintoma específico, apenas uma sonolência, que era associada ao cansaço por pessoas mais próximas. Apesar do choque, a família de Tadeu permaneceu ao seu lado durante todo o processo, o que o personal relatou que foi essencial para sua recuperação.
“Infelizmente vi, esse ano, muitas campanhas apelativas para o Novembro Azul, mas a que me deixou mais incomodado foi o do Porta dos Fundos. O vídeo é ridículo e absurdo, e por mais que seja um canal de comédia, é uma comédia fraca e ruim. Caso quisessem fazer uma campanha de conscientização, poderiam ter feito de outra forma. Tanto eu quanto minha esposa não concordamos com nada dali”, afirmou.
Tadeu continuará sendo monitorado por uma equipe médica especializada e realizará, em breve, um novo exame de PSA para avaliar sua saúde após a remoção do tumor.
O “Novembro Azul” original
Além do uso frequente de abordagens inapropriadas, o Brasil é o único país que usa o termo “Novembro Azul”. Isso ocorre, pois a nomenclatura foi usada pela primeira vez pelo Instituto Lado a Lado pela Vida, em 2011, quando a organização “adaptou” uma campanha realizada por dois amigos australianos em 2003. O movimento original, apoiado por outros países ao redor do mundo, pretende conscientizar a população sobre a saúde masculina. O Instituto transformou essa campanha em uma iniciativa voltada para a prevenção do câncer de próstata.
O movimento original se trata do 'Movember', que foi concebido pelos ativistas Travis Garone e Luke Slattery. Durante um momento descontraído em um bar, eles decidiram adotar bigodes, que estavam fora de moda na época. Inspirados por uma campanha de arrecadação de fundos contra o câncer de mama liderada pela mãe de um amigo, associaram o uso do bigode à conscientização sobre a saúde masculina.
Os amigos escolheram o mês de novembro para deixar o bigode crescer, coincidindo com o Dia Mundial do Combate ao Câncer de Próstata, celebrado em 17 de novembro e, na época, aproximadamente 30 amigos de Garone e Slattery participaram do primeiro ano. O crescente interesse na tendência do bigode levou à rápida disseminação da história. No ano seguinte, surgiu a Movember Foundation, uma organização sem fins lucrativos que recebeu seu nome da combinação de "moustache" (bigode) e "November" (novembro). Desde a sua fundação, a organização financiou mais de 1,2 mil projetos voltados para a saúde masculina.
Ainda em atividade, a Movember deixa claro que sua ênfase está na saúde masculina, abrangendo a preservação da saúde mental, a prevenção do suicídio, bem como o combate e a prevenção dos cânceres de próstata e testículo.
Segundo o médico urologista, professor Livre-Docente em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e diretor do Laboratório Androscience, Jorge Hallak, é essencial que as campanhas do Novembro Azul sigam o modelo da campanha original, direcionando seu foco para a conscientização sobre a saúde masculina ao todo, e não apenas para o câncer de próstata.
“O homem é um órfão de médicos desde que ele deixa de ser atendido pelo pediatra. Com muita sorte, ele vai ao médico fazer o exame do toque retal por volta dos 40, 50 anos e só volta caso ele apresente sintomas de alguma doença, para tentar ‘remediar’ a situação. Por isso, para mim, o Novembro Azul deve ser um mês dedicado à conscientização sobre a saúde do homem, não só ao câncer de próstata”, disse o urologista.
Jorge esclarece que pesquisas recentes mostram que a saúde da população masculina tem piorado nos últimos anos, com muitos homens apresentando quadros de sedentarismo, ansiedade, depressão e até mesmo infertilidade, o que resulta na fragilização de sua integridade física e mental, deixando-os mais propensos a desenvolver doenças graves no futuro — o que inclui o câncer de próstata. Com isso, a melhor forma de prevenção para a doença vem da adoção de hábitos saudáveis, como uma dieta equilibrada, a prática regular de exercícios físicos e a abstenção de substâncias que podem causar dependência, como álcool e maconha.
O médico defende que esses hábitos devem ser adotados desde a juventude, associados a acompanhamentos apropriados realizados em conjunto com médicos especialistas. Isso permite que o homem tenha uma vida de qualidade, prevenindo quadros que afetem sua saúde e evitando diagnósticos e tratamentos tardios caso alguma doença seja detectada durante os exames de rotina.
Quem deve fazer o exame de próstata?
Além do vídeo do Porta dos Fundos, outra fala de “conscientização” que ganhou destaque nas redes sociais foi a declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a edição do dia 07 de novembro de seu programa semanal, o “Conversa com o Presidente”. Na ocasião, Lula disse que existem outros exames para o rastreamento do câncer de próstata, mas que o exame de toque seria o exame mais “completo” para a detecção precoce da doença. O presidente também afirmou que “todo homem que se preze deve fazer o exame de toque”.
Ao contrário do que foi sugerido por Lula, não há consenso na comunidade médica sobre a necessidade dos exames de detecção do câncer de próstata em todos os homens. Algumas entidades defendem a necessidade do exame apenas para homens pertencentes a grupos de risco, enquanto outras defendem o exame para todos os homens a partir dos 50 anos de idade.
Os grupos que têm um maior risco genético de desenvolver a doença são aqueles com histórico familiar próximo — casos em que o avô, o pai, o irmão mais velho, por exemplo, tiveram a neoplasia — e homens negros. Além disso, a obesidade e a idade avançada contribuem para uma maior chance de ter o câncer.
Dentre as entidades que não recomendam os exames para todos, estão o Ministério da Saúde e o INCA. Para os órgãos, homens que não apresentam sintomas e que não fazem parte de grupos de risco não precisam fazer o “rastreamento”, termo utilizado para a realização dos exames em homens sem sintomas do câncer. Em uma nota técnica divulgada no fim de outubro, o INCA afirma que o rastreamento provoca danos à saúde do homem porque nem sempre, em um diagnóstico precoce, seria possível afirmar se o tumor é agressivo ou de crescimento lento, o que levaria ao sobretratamento.
"O sobretratamento é o tratamento de cânceres que não evoluiriam a um ponto ameaçador e pode gerar importante impacto na qualidade de vida dos homens, como as disfunções sexual e urinária", diz a nota, referindo-se a condições que podem ocorrer após a cirurgia do câncer de próstata.
Em contraste, a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), entre outras sociedades médicas, defende o rastreamento como essencial para diagnosticar tumores em estágios iniciais, muitas vezes assintomáticos. Após a divulgação da posição do Ministério, a SBU emitiu uma nota técnica onde afirmou que ferramentas modernas têm contribuído para a seleção mais precisa de pacientes que se beneficiarão do tratamento. Muitos deles podem ser monitorados por meio da "vigilância ativa", passando apenas por exames periódicos, enquanto a cirurgia pode ser dispensada ou adiada. Por outro lado, identificar um câncer avançado reduz significativamente as chances de cura, além de demandar tratamentos mais complexos e com mais efeitos colaterais.
“Para os grupos de risco, aconselhamos que ele converse com um médico a partir de 45 anos e tome uma decisão compartilhada em relação aos exames de rastreamento. Para os homens que não são de grupos de risco, a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) aconselha que essa conversa também seja feita, mas a partir dos 50 anos. A decisão compartilhada é importante, precisamos estimular esse diálogo entre o homem e o médico”, explica Alfredo Felix Canalini, médico urologista e presidente da SBU, em entrevista para O Globo.