Matemática 'antirracista': a redução do rigor no ensino de exatas
UFRJ busca suavizar o rigor no ensino de exatas para para tentar evitar evasão de cotistas
Reportagem publicada em 13 de junho de 2023
Depois do bem-sucedido sucateamento dos ensinos fundamental e médio, e do avanço de analfabetos funcionais com formação superior no Brasil , uma nova etapa na destruição da educação está sendo colocada em prática.
Os cursos das áreas de exatas, até então considerados imunes a questões doutrinárias, começam a dar sinais de aparelhamento.
Nossa reportagem conversou com Pedro (nome fictício), estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que se surpreendeu ao ter acesso à prova de “Cálculo I” da turma de engenharia deste semestre: todas as 15 questões do exame eram de múltipla escolha e, segundo ele, de nível abaixo do esperado para um curso superior – especialmente na engenharia.
“É possível fazê-las de cabeça. Quem se prepara para uma prova nesse nível dificilmente vai conseguir resolver uma prova mais elaborada como essa que eu fiz.”, disse Pedro, que cursou “Cálculo I” no primeiro semestre de 2016.
Pedro conta que, ainda que parte de suas provas também tivessem questões de múltipla escolha, as questões discursivas correspondiam a 60% do total da nota. Pedro acredita que o nível da prova foi reduzido com a suposta intenção de combater as desigualdades e o racismo. De acordo com ele, o índice de reprovação sempre foi alto, mas alterar o conteúdo da matéria ou facilitar a prova para reduzir a reprovação nunca foi considerado.
Em abril deste ano, Cláudia Morgado, diretora da Escola Politécnica – o instituto de engenharia da UFRJ –, comunicou em uma aula inaugural do Curso André Rebouças que promoveria mudanças no conteúdo da disciplina de Cálculo devido aos grandes índices de reprovação: “Não pode ser normal reprovar 70% da turma; e pior, sistematicamente”, disse a diretora.
A deputada estadual Renata Souza (PSOL/RJ), que integrava a mesa do evento, interpretou essa reprovação como uma questão racial. Para ela, a disparidade nos índices de sucesso e retenção dos estudantes negros mostra o “racismo institucional” que impera não apenas nas universidades, mas em diversas instituições no nosso país.
Além disso, de acordo com um levantamento interno da UFRJ, não divulgado, a taxa de formatura dos alunos negros nas engenharias é de 42%, contra quase 90% dos estudantes brancos. Para a universidade, de acordo com esses números, está claro que há algo de muito errado na disciplina do curso da UFRJ.
Carrasco dos calouros
”A prova está dentro do conteúdo. O que não está claro é a questão do desenvolvimento, que para nós professores é tão importante quanto a resposta. O aluno precisa desenvolver a resolução ou basta assinalar? Isso não fornece ferramentas para analisar a evolução conceitual dele”, disse um professor da UERJ, que pediu para não ser identificado com medo de represália.
Conhecida como o “carrasco dos calouros”, a dificuldade do Cálculo é famosa nas universidades. Segundo o professor isto acontece porque até o ensino médio o aluno ainda é muito dependente, já no curso superior cabe ao próprio aluno gerenciar sua rotina de estudos – frequentando a biblioteca, procurando material suplementar, resolvendo listas de exercícios ou realizando grupos de estudos com colegas. Ou seja, buscar a informação faz parte do treinamento, tanto na vida acadêmica quanto no mercado de trabalho.
O professor acredita que, mesmo que a prova seja facilitada, se o aluno deixar para estudar apenas na véspera, entrará em desespero e acabará cometendo erros. “Recentemente resolvi uma série de exercícios no quadro e tirei dúvidas. Coloquei as mesmas questões na prova de Física I e os alunos erraram. Fato semelhante aconteceu no Cálculo II. Quando questionados se haviam estudado apenas na véspera, a resposta foi sim”, lembra.
Ele conta também que entre os cotistas há uma taxa grande de evasão (cerca de 30%) e que há uma grande diferença no rendimento entre os cotistas e os que não são. O professor afirma que o problema não está no curso ou no nível da prova, mas na qualidade do aluno que chega do ensino médio, principalmente por causa do tempo dedicado pelo aluno aos estudos.
Duas visões para o mesmo fenômeno
Em 2014, os professores Ivo F. Lopez e Claudia Segadas, ambos do Departamento de Matemática da UFRJ, publicaram um artigo examinando os dados relativos aos candidatos aprovados no vestibular de 2008 (mesmo ano que a universidade começou a adotar cotas) na Escola Politécnica da UFRJ, correlacionando os resultados das provas do vestibular com os resultados dos alunos de Cálculo I, e seus desempenhos ao longo do curso em disciplinas que utilizem os conhecimentos adquiridos ou o raciocínio desenvolvido nos cursos de Cálculo.
No artigo, dos 374 alunos analisados em 2008/1, a taxa de aprovação foi de 72%. No final do primeiro semestre de 2010, 96,5% da população considerada tinha sido aprovada e 2% teve a sua matrícula cancelada. Ainda segundo os professores, embora os índices de reprovação de Cálculo sejam elevados, um alto percentual dos alunos consegue concluir os cursos.
O gráfico a seguir mostra as aprovações em Cálculo I ao longo dos semestres apresentado no texto:
O estudo apontou que o desempenho em Cálculo I está relacionado com a média das provas específicas (matemática, física e química) e, apesar da alta reprovação na disciplina, cerca de 95% dos alunos foram aprovados ao longo dos semestres. Outro resultado encontrado foi que o desempenho dos alunos ao longo do curso de Engenharia depende muito de cada cadeira de Cálculo.
E em maio desse ano, A Pró-Reitoria de Graduação da UFRJ, divulgou internamente um estudo com o desempenho dos alunos da universidade, estratificado por sexo, etnia, curso etc. Curiosamente, os gráficos indicaram que a curva de desempenho tem comportamento muito similar entre os alunos do Centro de Tecnologia (CT) – que compreende a Escola Politécnica e a Escola de Química – e a UFRJ como um todo:
Quando separado por etnia, o comportamento da curva de desempenho dos alunos do CT é:
Há discrepância no comportamento das curvas, mas a evasão apresenta um comportamento com padrão mais próximo entre os três indicadores, além de ter dados estatísticos compreendendo um período maior – o que pode indicar a razão do comportamento discrepante dos outros dois indicadores. Entre 2016 e 2019, apesar da reprovação ter aumentado nas etnias pardas e negras, o índice de evasão flutua. Podendo indicar que não há necessariamente uma correlação entre evasão e reprovação.
Não é possível a partir deste estudo apontar a contribuição do Cálculo I para a evasão e reprovação – como visto nos gráficos do “Grupo 1”, o desempenho dos alunos do CT (que fazem cálculo), é similar ao de toda UFRJ, (que inclui os cursos sem essa disciplina).
Outro lado
Nossa equipe entrou em contato por e-mail com a assessoria de imprensa da Escola Politécnica, questionando que tipo de estudo foi feito e quais as medidas tomadas para evitar que o problema da reprovação e evasão sejam mascarados com uma “aprovação quase automática” do aluno de etnia diferente da branca, mas não obteve resposta às perguntas enviadas.
Nos foi enviado apenas um link com uma entrevista concedida ao CREA-RJ em que a professora Cláudia Morgado defendeu as mudanças adotadas na Politécnica. Ao ser questionada sobre a diferença no desempenho de um aluno cotista e aquele que entra sem, a professora disse que não há estudos que apontem correlação entre as notas do ENEM e suas notas em Cálculo. Afirmação que contraria o estudo realizado pelos professores do departamento de Matemática da UFRJ, em 2014.