Exclusivo: Perícia aponta fraude temporal em relatório da PF que embasou ação de Moraes contra empresários de direita
Documento assinado pelo delegado da PF Fábio Shor aparece datado de 19/8, mas metadados indicam criação em 29/8/2022
Um laudo pericial solicitado por A Investigação confirma que o relatório apresentado como fundamento para a operação de busca e apreensão contra empresários bolsonaristas, em 23 agosto de 2022, foi produzido dias depois da ação já ter sido executada. O documento, atribuído ao delegado Fábio Alvarez Shor, aparece datado de 19 de agosto de 2022, mas os metadados revelam que o arquivo PDF só foi gerado em 29 de agosto — seis dias após a Polícia Federal cumprir os mandados expedidos pelo ministro Alexandre de Moraes.
A perícia identificou ainda que o relatório não possui assinatura digital qualificada (ICP-Brasil). As duas rubricas de Shor inseridas no documento são graficamente idênticas e se comportam como imagens sobrepostas, caracterizando o que os peritos chamam de transplante digital de assinatura. “Trata-se de antedatação e ausência de autenticação inequívoca”, conclui o parecer.
Leia aqui o relatório completo.
A operação de 23 de agosto atingiu nomes de peso do empresariado, entre eles Luciano Hang (Havan) e Meyer Nigri (Tecnisa), com bloqueio de perfis nas redes sociais, apreensão de celulares e quebras de sigilo bancário. A medida foi deflagrada a partir de uma reportagem publicada dias antes pelo portal Metrópoles, que expôs mensagens privadas do grupo de WhatsApp “Empresários & Política”.
Em audiência no Senado na última terça-feira, 2, o ex-assessor de Moraes no TSE, Eduardo Tagliaferro, afirmou ter recebido ordens para confeccionar relatórios com data retroativa, além de mapas mentais ligando empresários a supostos financiadores de atos antidemocráticos. Segundo ele, a pressão veio do juiz instrutor Airton Vieira, braço-direito de Moraes, “para construir uma história” que desse aparência de legalidade à operação.
As declarações convergem com os achados técnicos: um documento que deveria ter sido produzido antes da operação do dia 23 apresenta data interna de 29 de agosto.
O relatório pericial
O laudo foi solicitado por A Investigação e produzido pelos peritos Reginaldo e Jacqueline Tirotti, reconhecidos como alguns dos maiores especialistas do país em perícia digital e documentoscopia. Com décadas de experiência em análises para o Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal, os dois têm formação sólida em tecnologia e criminalística e atuam justamente na detecção de fraudes em arquivos eletrônicos.




O objeto do exame foi o PDF “Representações PF – Pet. 10.543”, baixado diretamente do site do STF. Trata-se do documento atribuído ao delegado Fábio Alvarez Shor, apresentado como fundamento para a operação de busca e apreensão contra empresários bolsonaristas em agosto.
Poucos dias depois da ação, em 29 de agosto, o ministro Alexandre de Moraes decidiu retirar o sigilo da Petição 10.543. Ele alegou a existência de “inúmeras publicações jornalísticas contraditórias” sobre a decisão original e, ao liberar parte dos autos, tornou públicas as representações da Polícia Federal e a manifestação do juiz instrutor que vinculava o caso dos empresários aos inquéritos das fake news e das milícias digitais.
Os peritos validaram a integridade do arquivo e extraíram os chamados metadados — informações invisíveis para o usuário comum, mas que registram a “impressão digital” de um documento, como a data exata de criação, o programa usado e alterações posteriores. O resultado foi categórico: embora o texto traga a data de 19 de agosto de 2022, o PDF só foi efetivamente gerado em 29 de agosto, às 14h55 — seis dias depois da operação já realizada.
Outro ponto levantado foi a questão da assinatura digital. Em documentos oficiais, a lei prevê o uso de certificados emitidos pela ICP-Brasil, que funcionam como uma identidade eletrônica e garantem a autoria do signatário. No caso do relatório, não havia essa certificação. As duas assinaturas de Shor, localizadas nas páginas 12 e 18, eram cópias gráficas idênticas, aplicadas como imagem sobre o texto — procedimento conhecido como transplante digital de assinatura, prática comum em manipulações de arquivos.
Por fim, o laudo conclui que houve antedatação, ou seja, a atribuição de uma data anterior à efetiva produção do documento. A ausência de certificação digital e o uso de assinaturas transplantadas impedem comprovar de forma inequívoca a autoria do relatório. Em termos práticos, o documento que embasou uma das operações mais polêmicas do processo eleitoral de 2022 apresenta inconsistências formais e temporais que comprometem sua legitimidade.
Rede informal de informações
Reportagens anteriores de A Investigação já haviam revelado que os materiais usados para reforçar a decisão de Moraes vieram de uma rede paralela de informantes. Conversas obtidas pela Vaza Toga mostram a jornalista Letícia Sallorenzo, conhecida como “Bruxa”, repassando prints e até a exportação integral do grupo dos empresários ao gabinete do TSE na noite de 27 de agosto. O objetivo, segundo mensagem dela, era “sossegar o amigo” — em referência ao ministro.
As mensagens tinham origem em uma fonte infiltrada no grupo “Empresários & Política”, identificada por nossa apuração como o jornalista Lucas Mesquita, que hoje ocupa cargo comissionado no governo Lula. Foi ele quem extraiu os conteúdos privados que acabaram abastecendo diretamente o gabinete de Moraes.
As conversas ainda revelam a proximidade de Letícia com o círculo íntimo do ministro: ela própria sugeriu acionar a esposa de Moraes, Viviane Barci, para ganhar tempo na entrega do material. A jornalista se apresentava como amiga de Viviane — tanto que o próprio contato dela estava salvo nos celulares como “amiga da esposa do ministro”. Em outro momento, perguntou se o celular de Meyer Nigri, apreendido pela PF, estava sob custódia de uma “PF confiável”, chegando a sugerir que Tagliaferro colocasse “as mãos no aparelho”. O diálogo expõe a confiança de que havia um circuito paralelo de agentes alinhados ao ministro dentro da corporação.
O repasse foi feito fora de qualquer cadeia de custódia formal, sem perícia ou autos de apreensão, violando normas do Código de Processo Penal. De acordo com o advogado Richard Campanari, da Abradep, a ruptura da cadeia de custódia torna o relatório nulo de pleno direito. “Prints de WhatsApp entregues informalmente a um gabinete ministerial, sem perícia oficial, não oferecem garantia de autenticidade. Criar documentos posteriores e datá-los como anteriores pode configurar falsidade ideológica e abuso de autoridade”, afirma.
A “antedatação” identificada na perícia reforça a denúncia de fraude processual apresentada por Tagliaferro. Caso seja confirmada a ciência do ministro sobre as irregularidades, as consequências podem ir da nulidade dos atos à responsabilização penal e até a crime de responsabilidade.
Em manifestação de agosto de 2022, a então vice-procuradora-geral Lindôra Araújo apontou a fragilidade do caso e avaliou que as mensagens atribuídas aos empresários não configuravam crime, tratando-se de opiniões em ambiente privado, ainda que de mau gosto ou radicais, protegidas pela liberdade de expressão. Ela considerou desproporcionais medidas invasivas como buscas, bloqueios e apreensões baseadas apenas em prints sem cadeia de custódia e em uma reportagem jornalística, e defendeu o arquivamento da Petição 10.543 por ausência de justa causa. Na mesma época, o procurador-geral Augusto Aras demonstrou irritação com a operação, avaliando em conversas reservadas que a decisão de Moraes poderia prejudicar esforços de harmonia entre Executivo e Judiciário para conter a escalada de atritos institucionais.
Vaza Toga: A Bruxa, o Infiltrado e o Delator
Nossa reportagem teve acesso exclusivo a conversas de WhatsApp entre Eduardo Tagliaferro — então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE — e a jornalista Letícia Sallorenzo, conhecida como “Bruxa”. As mensagens expõem como, em agosto de 2022, durante o auge da campanha eleitoral, dados privados de empresários ligados …
O delegado no centro da crise
O nome de Fábio Alvarez Shor, que assina o relatório questionado pela perícia, já estava no centro de diversas controvérsias. Delegado da Polícia Federal, ele conduziu algumas das investigações mais sensíveis no STF, incluindo o inquérito da suposta trama golpista atribuída a Jair Bolsonaro.
Shor também foi apontado como responsável por relatórios que fundamentaram medidas contra Mariana Volf Pedro Eustáquio, filha do jornalista Oswaldo Eustáquio, no inquérito das milícias digitais. A defesa contestou os autos alegando que as referências a ela eram frágeis e ligadas indiretamente ao pai. O episódio ganhou repercussão quando o deputado Marcel van Hattem exibiu em plenário uma foto ampliada do delegado e o acusou de produzir “relatórios fraudulentos” contra pessoas inocentes. Por causa disso, Van Hattem acabou indiciado pela PF por calúnia e difamação.
O delegado também esteve no centro do caso Filipe Martins, ex-assessor de Jair Bolsonaro preso em 2024 após reportagem de Guilherme Amado, então no Metrópoles, que afirmava existir registro de sua entrada nos Estados Unidos. O documento, usado para justificar a prisão, revelou-se falso: havia erros de grafia no nome, dados de passaporte inconsistentes e visto irregular. Autoridades americanas chegaram a remover o registro do sistema migratório. A ligação entre Shor, que integrava a apuração, e a reportagem usada como base reforçou suspeitas de uso de provas frágeis ou até fraudulentas em decisões de grande impacto político.
Em 2024, Shor relatou ter encontrado um boneco de macaco de pelúcia preso ao carro em frente à sua residência — fato que interpretou como ameaça, embora nunca tenha sido esclarecida a autoria nem a motivação. Em outro episódio, foi convocado a depor como testemunha de defesa no Supremo, mas não compareceu, alegando férias — atitude que reforçou a percepção de que evitava prestar contas e aumentou as críticas de advogados à condução de inquéritos de caráter político.
Outro lado
Procurados pela reportagem, a Polícia Federal e o delegado Fábio Alvarez Shor foram questionados sobre as conclusões do laudo pericial que aponta possível fraude temporal e transplante de assinatura no relatório juntado à Petição 10.543. Até o fechamento deste texto, não haviam respondido.
Já o ministro Alexandre de Moraes foi questionado não apenas sobre o relatório assinado por Shor, mas também sobre o uso de material repassado por colaboradores externos, como Letícia Sallorenzo e Lucas Mesquita, e sobre as denúncias de Eduardo Tagliaferro no Senado de que relatórios teriam sido produzidos retroativamente para sustentar a operação de 23 de agosto de 2022. O gabinete não respondeu a esses pontos específicos e enviou apenas uma nota genérica, que reproduzimos na íntegra:
“O gabinete do Ministro Alexandre de Moraes esclarece que, no curso das investigações dos Inq 4781 (Fake News) e Inq 4878(milícias digitais), nos termos regimentais, diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos, inclusive ao Tribunal Superior Eleitoral, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições.
Os relatórios simplesmente descreviam as postagens ilícitas realizadas nas redes sociais, de maneira objetiva, em virtude de estarem diretamente ligadas as investigações de milícias digitais.
Vários desses relatórios foram juntados nessas investigações e em outras conexas e enviadas à Polícia Federal para a continuidade das diligências necessárias, sempre com ciência à Procuradoria Geral da República. Todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria Geral da República.
Na PET 10.543, o procedimento foi absolutamente idêntico. Após a decisão do Ministro relator, em 19 de agosto, foi solicitado relatório para o TSE, que foi juntado aos autos no dia 29 de agosto, tendo sido dada vista imediata às partes. O recurso da PGR não foi conhecido pelo STF, em 9 de setembro. Tudo regular e oficialmente nos auto.”
Publicação jornalistica garantida pelo art. 220 da Constituição Federal, cujos preceitos fundamentais foram reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130 e 601, e nos arts. 13 e 14 do Pacto de San José da Costa Rica. A Investigação assegura o direito de resposta proporcional e equivalente, devidamente fundamentado na Lei 13.188/2015, após análise jurídica de cabimento.
Parabéns pelo excelente, imprescindível e corajoso trabalho
Verdadeiro e grande jornalista!